Céu tombado

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16/09/2004 a 10/10/2004

No Céu Tombado peças fluidas e informes convivem com elegantes formas longilíneas e com rústicos módulos em que elas se apoiam ou se escoram, ou em relação aos quais de alguma maneira “orbitam”.

Dar forma às coisas. Ideia estranha a sujeitos automatizados que pouco mais fazem com as mãos além de digitar. O que primeiro salta aos olhos na instalação Céu Tombado, de Claudio Cretti, é a forma da mão. Cada peça guarda a memória da moldagem e da tendência a se aninhar na superfície da palma e entre os dedos das mãos. Cada uma dá a ver as mutações sofridas até chegar àquela conformação desequilibrada que assumiram quando foram dispostas entre as fatias de costões de mármore branco. 

Deste ninho primordial de que foram expulsas para a desconfortável situação de desaprumo sobre o chão, as esculturas podem se acomodar em um estado intermediário: ganham nichos cavados nas pedras brutas. Elas podem ou não ocupá-Ios, mas têm todas o seu lugar. Tomando emprestadas outras palavras do poema que inspirou o título do trabalho, os elementos que constituem a obra como que correspondem a diferentes graus de sedimentação da matéria: espumas, esteiras e ondas-nuvens. 
No Céu Tombado peças fluidas e informes convivem com elegantes formas longilíneas e com rústicos módulos em que elas se apoiam ou se escoram, ou em relação aos quais de alguma maneira “orbitam”. Assim como aqueles colchões de nuvens vistos do avião parecem organizar as massas e linhas desgarradas, as “bases” dão unidade ao conjunto, alinhavam o percurso e funcionam como portos para as esculturas algo à deriva no espaço. 
A sensação de deriva (que poderia ser simplesmente denominada estado de suspensão) advém principalmente a quem tenha tido a experiência de percorrer as exposições anteriores de Claudio Cretti. Antes da instalação Sinuca de Bico, realizada em uma praça na Vila Buarque integrando o projeto “Genius Loci” (2002), a reunião de esculturas do artista em mostras individuais possibilitava uma apreensão de conjunto, como se uma peça levasse naturalmente a outra, embora evidenciasse, ao mesmo tempo, a separação entre elas. 
Se ao longo de sua trajetória, tanto no campo da escultura como no do desenho, Cretti foi desbastando cada vez mais livremente os materiais com que trabalha – indo do geometrismo e dos encaixes perfeitos das obras de 1997 (individual na galeria Marília Razuk) e do amolecimento das formas e assimetrias nas peças de 2000 (na mesma galeria) até a organicidade das esculturas quase arredondadas de 2001 (individual no Centro Universitário Maria Antonia) – também foi integrando-os espacialmente. 
O que nas exposições de 2000 e 2001 parecia um convite a deslizar o olhar por todo o espaço, pontuado por elementos distintos que o corpo contornava, nas duas versões de Sinuca de Bico (a segunda foi apresentada também em 2002, na mostra coletiva “Galpão 15”) se transformou em sequestro desse olhar, que era sugado para o espaço e também do corpo que se percebia imerso. É deste modo que o Céu Tombado provoca no espectador uma sensação de suspensão. 
De par com o que a Sinuca anuncia de novo, há o que ela traz de volta. Retorna a textura dos desenhos e relevos do início da década de 1990. Os desenhos eram feitos de acúmulo de papéis colados e recortados, que resultava em superfícies rugosas, e os relevos eram constituídos de pigmento peneirado que ia se sedimentando em placas de fibra de vidro. Volta a textura nas peças de granito e a cor nas esferas de resina distribuídas pelo espaço: o jogo visual se estabelece quando virtualmente o espectador encaixa as bolas de sinuca nos furos-caçapas feitos no granito.
  A escolha por trabalhar com a pedra bruta talvez tenha dado ensejo às esculturas apresentadas em 2003, na galeria Marília Razuk, em que o contraste bruto/polido,natureza/cultura, arqueológico/estético não apenas se evidencia como se torna característica inerente à obra. nenhum elemento é mais importante que outro. A obra de Claudio Cretti deixa de ser feita de partes que dialogam entre si. A ocupação espacial que cria um outro lugar (além de instaurar um outro tempo, o que suas esculturas anteriores já faziam individualmente) se manifesta no amálgama que o artista obtém em Onde Pedra a Flora
Esculturas de mármore travertino com acabamento tosco lembram a forma de uma cabaça. Espalhadas por uma base informe de barro, algumas completamente entranhadas na terra, outras soltas, mais à deriva, misturam- se a umas poucas esferas de granito não desbastado. Em Céu Tombado há também uma esfera de mármore, quase do tamanho das bolas de sinuca das instalações anteriores. Se as esferas funcionam como memória de Sinuca de Bico, as formas, assemelhadas a cabaças, que denunciam a mão como molde, guardam a memória de um trabalho de Cretti que jamais saiu do papel. 
Registrado em um de seus inúmeros cadernos, consistia na distribuição de várias mós em um ambiente forrado de pigmento. Mó é uma pedra com um formato bojudo embaixo e comprido em cima, para facilitar o manuseio. utilizada para amassar pigmento. Fascinante em si mesma, a peça serviu de inspiração ao artista para uma instalação em 2001 que não chegou a ser realizada. Nas obras que Claudio Cretti ora apresenta no Paço das Artes, vemos deformações da mó, que mantêm seu princípio de funcionamento. Entretanto, ao desviar o objeto de seu sistema de significação, o artista ampliou suas potencial idades poéticas. 
Como afirmou Roland Barthes, “na verossimilhança, o contrário nunca é impossível”, o que permitiu que a mó, uma vez desfigurada e descontextualizada, encenasse seu exato oposto, tornando-se pedra que aflora do barro.
* Claudio Cretti foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2004
Governo do Estado de SP