O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva
Bruno Novaes e os dias de chuva
Na exposição O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva (Paço das Artes, 2019), Bruno Novaes propôs um diálogo entre ambiente escolar e alguns conteúdos disciplinadores do campo educacional, a partir da evocação da experiência no espaço-escola, a sua própria e aquela que, intui, muitos viveram como alunos e, outros, como professores. Atuou como professor por uma década ampliando as brincadeiras de criança, quando na rua Maceió, em São Caetano do Sul, construía ambientes escolares imaginários. Assim, seu interesse em ensino e aprendizagem em arte é uma constante, corporificado nos trabalhos.
O artista oferece ao visitante envolvimento sensorial e afetivo naquele universo, como, por exemplo, no trabalho Ensino confessional (2017-atual), que solicita a participação na produção de confissões pessoais, inseridas de forma anônima e repetida em caderno de caligrafia e, de forma geral, instalado em carteira típica de salas de aula do século XX. Esse exercício, no qual a maioria dos visitantes participa com empenho e cuidado, mobiliza a memória sobre aquele espaço-escola a partir de suas formas recorrentes, disseminadas pelos processos civilizatórios do século XIX. Os cheiros, sonoridades, mobílias, organização espacial, cores, entre outros elementos, são característicos do formato arquitetônico escolar globalizado, com o qual quase todo o mundo ocidental, pautado pela hegemonia europeia no campo escolar, teve contato. Por outro lado, sem dúvida, a articulação histórica da escola brasileira ao passado religioso com finalidade de catequese é provocada nesse mesmo trabalho, criando um ambiente no qual confissão, culpa e penitências estão presentes de forma transitória. O autor investe, de forma precisa, nesses lugares ambíguos, conectando saber e poder, singelezas e arbitrariedades, civilidades e violências, fragilidades e brutalidades.
Além disso, cria contrapontos mais contemporâneos e documentais, como em Corpo decente (2018), instalação sonora com depoimentos de censura ou discriminação aos professores, em ambiente forrado com centenas de quilos de giz branco. Nessa relação entre som, estímulos olfativos e conteúdos, a narrativa da instalação justapõe a censura aos alunos e professores.
Historiadores da educação apontam para a expressiva significação do espaço-escola como elemento curricular, fonte de experiência e aprendizagem, um currículo oculto, controlador de movimentos, costumes e do tempo com seus ritmos próprios, herdados da vida nos conventos. Para os autores, a arquitetura escolar é um discurso que institui “na sua materialidade, um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos. O debate sobre o espaço tem impacto nos estudos contemporâneos, desde a concepção física desdobrada em suas dimensões sociais, políticas, imaginárias e virtuais, e o edifício escolar – e seu aparato material, as mobílias e superfícies – relaciona diferentes práticas históricas, superpõe técnicas de controle e experiências diversas dos seus habitantes. Os vestígios dessa vida podem ser captados a partir das provocações de Novaes que, ao oferecer a materialidade física daqueles espaços, também apresenta a superposição dessas temporalidades para seu observador participante. Não foge ao seu radar a organização formatada e impeditiva da liberdade dos corpos, envolvidos, no ambiente escolar, na burocracia dos espaços e dos tempos, adestradores de obedientes, reguladores para uma vida correta e longe dos desajustes sociais.
Não é possível tomar contato com esses trabalhos e não verificar as limitações do campo educacional e suas instituições como lugar de reflexão crítica ou ativadora de atitudes comprometidas com justiça social.
No caso específico da exposição, nas séries apresentadas, Novaes tende para a ambiguidade das formas exibidas – cuidadosas, delicadas, nostálgicas –em confronto com os elementos de opressão daquele ambiente, em particular no que diz respeito às questões de gênero e de orientação sexual, apontando o bullyingviolento e tradicional que caracteriza a manifestação de preconceitos sociais sobre essas questões. Nesse sentido, Pequenos legados (2019) apresenta a visualidade nostálgica dos anos escolares de maneira sensível, mas que vai fechando o cerco em torno de uma herança material esvaziada de suas funções ou que setransmutou em outros meios, masque continua como pano de fundo intimidador do espaço-escola. Na exposição, ficava evidente, por meio do trabalho Jogo dos erros (2018), por exemplo, que os sutis e sistemáticos ataques sofridos na infância e na escola continuavam sob a forma mais perversa da perseguição disfarçada de preocupação: Bruno foi demitido de uma escola porque representava algo perigoso. Resta perguntar para quem.
As condições sociais nas quais a exposição foi inaugurada também levama refletir sobre as diversas situações nas quais o circuito artístico era, naquele instante, agredido: assim como a definição do que seria educação passava por um esvaziamento simplista, a palavra arte era capturada por um filtro redutor que a pausterizava ao gosto de alguns, cujo pano de fundo parece ser uma estereotipada e generalizante noção de tradição artística pré-moderna. Nos dias atuais, no Brasil, esse constrangimento parece tomar conta do espectro não só da cultura, mas também detodas as dimensões da vida.
Há no conjunto de obras de Novaes, uma outra evocação do ambiente educacional, a presença e importância da palavra, que designa, restringe, mas amplia o mundo. Muito atento asua potência a partir de seu uso, o artista identifica sua violência, demonstra as contradições presentes nos enunciados, e como a palavra serve, igualmente, para a denúncia, reflexão e ação. Novaes é também cantor, e o interesse na palavra esteve sempre presente: as modulações, extensões, sonoridades surgem nas instalações e como desenhos. Afirma: “a palavra chega antes da imagem no processo criativo, como som, elemento gráfico, designações”. Exemplar, nesse sentido, é o conjunto denominado Manual de Conduta de Corpo Docente (2018), no qual textos e imagens sutis vão, a partir de processos de corroboração e contradição, construindo ou reconstruindo um cenário de pressão e violência explícitas.