#PaçoEmTodoLugar | texto crítico de Marcio Harum

acerca do fracasso das formas

     acerca do fracasso das formas do Coletivo Cartográfico e Jorge Soledar é uma instalação com 9 vídeos em 3 canais de monitores de TV, 33 fotografias expostas sobre uma parede, 9 textos impressos em blocos destacáveis de papele imagens sobre a superfície de uma mesa, ferramentas, fiação elétrica, residuais provenientes de materiais de construção, objetos e mobiliário doméstico + uma performance ao final do período expositivo.

Logo junto a entrada, uma peça escultórica içada com inúmeras ferramentas reunidas sob amarrações surgia montada contra a parede. Avistada em sua profundidade, a sala em que foi apresentada a vídeoinstalação acerca do fracasso das formasexibiuuma ambiência com efeitos de 2 luzes de abatjoure lâmpadas, 2 cadeiras estofadamente apoltronadas, envoltas por um fundo inacabado com revestimento de papel de parede estampado floral em preto e branco.O públicodava passos livres pelo espaço enquanto observava sentado, ou de pé, os vídeos e fotografias. O ponto de origem de tais vídeos e fotografias advém da realização de uma performance duracional de 24h non stop do Coletivo Cartográfico e Jorge Soledar num galpão em escombros à beira de demolição no bairroda região central do Bom Retiro, em São Paulo, 2017.As fotografias são de Cacá Bernardes, o vídeo da Bruta Flor Filmes e a expografia do artista Pontogor, colaboradores no decorrer do processo de amadurecimento do projeto.

O que parece realmente vir a interessar ao Coletivo Cartográfico – Carolina Nóbrega, Fabiane Carneiro e Monica Galvão, um grupo atuante de 3 mulheres de São Paulo no território da dança e artes visuais em dialogia desde 2016 com Jorge Soledar, um artista e professor do Rio de Janeiroé, segundo a própria definição do Coletivo Cartográfico, a perturbação de fronteiras da dança com outras áreas e linguagens. Como suas 3 integrantes experienciaram formações e vivências distintas (arquitetura e urbanismo, história, teatro contemporâneo e performance), para elas, a compreensão da ‘coreografia’ faz sentido em relação a dança como um campo para corpos que se deslocam socialmente, que dão respostas físicas a insurgências e transgressões. Enxergam a dança como uma disciplina cartográfica.

Se por um lado, o trabalho continua a atacar símbolos anacrônicos da atmosfera burguesa típica desde os anos 1960, por outro, é igualmente perceptível um certo romantismo atemporal da intenção. Não obstante, trata-se aqui da dúvida em se abrir mão quanto a tecnologia a mercê de indagações atuais, mas sim também, de reconhecer a constituição dos elementos fundadores desta pesquisa artística, inspirada pela transformação e a aniquilação do corpo humano diante do contato com as coisas e lugares do mundo a nossa volta (corpo-coisa).

Por entre espaços em que a força da ruína e a do canteiro de obras parece guiá-los, Jorge Soledar remete o trabalho, como ele mesmo assumiu por escrito em conversações, a uma vontade antropomorficamente crítica quanto aos instrumentos de desumanização da vida coletiva. acerca do fracasso das formas lida com a noção de temporalidades sobrepostas e a urgência do rompimento com o primitivismo de nossa sociadade forjada sob o cerne de estruturas do colonialismo. Nos faz lembrar que, nos dias de hoje, ainda testemunhamos no debate público a assuntos dos discursos políticos e das pulsões de massa, que pareciam já ter sido absolutamente superados pelo tempo histórico – temas presentes como resquício de nossas raízes preconceituosamente escravocratas, racistas, misóginas.

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Em janeiro de 1938, para a Exposição Internacional do Surrealismo em Paris, articulada pelos escritores André Breton e Paul Éluard, pendiam pendurados do teto 1.200 sacos de carvão, alémdo piso ter sido forrado por uma camada de folhas secas. O vestíbulo da exposição encontrou-se povoado de manequins, uma referência ao universo das imagens de moda, produzidos para a ocasião pelos artistas Man Ray, Marcel Duchamp, Max Ernst, Salvador Dalí e demais participantes.

Sobre a performance ocorrida na noite de 30 de julho de 2019 no teatro do MIS em São Paulo, Coletivo Cartográfico e Jorge Soledar apresentaram em conjunto uma ação simultânea com manequins sobre o palco. Como um vídeo editado com 4 faixas paralelas na tela, os 4 performaram juntos, cada um a seu tempo, modo de expressão e ritmo. Via-se sobre o tablado imagens de corpos em movimento que interagiam com manequins. Uma das artistas induzia o espectador a assistir um violento embate consigo mesma, que por seu figurino, assemelhava-se a um uniforme de trabalhador operário ou algo assim, enquanto tornava-se totalmente imobilizada por suas próprias atitudes de aprisionamento. Outra performer, que remetia a figura de uma secretária de escritório, estabelecia uma relação de abuso, manipulação e domínio com o boneco; sendo ela ora vítima, ora algoz. A presença masculina do grupo apareceu com uma vestimenta militarizada de camuflagem e armado com uma furadeira, com a qual praticava mutilações e perfurações do objeto. E por fim, a quarta e última performer, trajada como se fosse uma insuspeita jovem dama da alta sociedade, ocupava-se em atar por nós os volumes de tecidos disformes e coloridos, amarrando diversosmateriais têxteis em uma trama única, uns aos outros, como uma enorme malha emaranhada sem fim.

O forte sentimento que pairou sobre o lugar da platéia durante a performance era o de queum show de ação com personagens da sociedade contemporânea era assistido como um painel ao vivo.A performancesintetizou a potência conceitual do trabalho como um todo, ao questionara ideia de existências obsoletas e fantasmáticas. acerca do fracasso das formas escancara como um tableau vivant plasmado no futuro a nossa realidade distópica de termos que viver junto com uma classe dominante que vive às custas da ruína de todos nós.

Governo do Estado de SP