#PaçoEmTodoLugar | texto crítico de Claudinei Roberto

Entre o azul e o que não me deixo/deixam esquecer

Desde 1996 o Paço das Artes mantêm seu programa “Temporada de Projetos” que vem oferecendo á artistas, geralmente jovens, uma oportunidade de exibir com propriedade o resultado de suas pesquisas e inquietações. O programa desse modo sedimenta sua importância num cenário cultural que é, infelizmente,ainda muito carente de iniciativas do gênero. O caráter pluralista do projeto tem permitido a exibição das propostas de artistas de variados matizes sociais, de raça e de gênero o que contribui para o refino e excelência dessa proposta de vocação democrática.

Juliana dos Santos é o nome artístico de Juliana Oliveira Gonçalves dos Santos artista e arte educadora, mestre e doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, a artista nasceu em 1983 no Parque Peruche, bairro da Zona Norte da capital de São Paulo, onde ainda hoje vive e trabalha.O bairro natal da artista e a anexa “Casa Verde” são conhecidos como tradicionais berços do Samba e do Carnaval na cidade, estão lá sediadas as Escolas de Samba “Unidos do Peruche”, “Camisa Verde e Branco” e “Mocidade Alegre”.Afrodescendente, como parte considerável da população que habita aquela região da cidade, dos Santos foi, desde cedo, influenciada pela cultura promovida e mantida por um núcleo de familiares que frequentavam assiduamente aquele ambiente e exercitavam suas habilidades sensíveis praticando a musica, a dança, e o artesanato. A artista afirma que esse ambiente motivou de maneira decisiva sua adesão ao “Corpo de Dança do Balé Folclórico de São Paulo” e que essa decisão estimulou seu interesse pela cultura de matriz afro-atlântica e afro-brasileira das quais participa. Essas referências de ordem biográfica não são como veremos, de pouca relevância, mas, pelo contrário, elas serão determinantes aos propósitos da artista.

Numa das galerias do Paço das Artes o ambiente foi recoberto por tiras de pano branco de diversos comprimentos que suspensos no teto estão rigorosamente organizados, eles são iluminados desde o chão por um feixe de luz azul-lilás que confere ao conjunto muita leveza e uma etérea transparência. Quem se aproxima e penetra no ambiente criado e instalado pela artista será convidado a inquirir-se sobre os múltiplos significados daquela obra e, dado às suas qualidades será igualmente instado à contemplação silenciosa imposta pela situação ali instaurada, silêncio apenas violado por um áudio da voz da própria artista. Em trabalhos anteriores a artista já manifestava seu interesse pelas cores e suas potencialidades, notadamente das primárias, e para a capacidade que estas têm de mobilizar nossos sentidos, não apenas o visual, esse interesse resultou no projeto “Necessidade Primaria” que entre outros desdobramentos propôsuma intervenção realizada nas dependências do Instituto de Artes da UNESP em 2013. Ali utilizando-se de tinta látex amarela a artista interveio num dado ambiente para em dialogo com a arquitetura provocar uma reflexão entre o público frequentador daquele espaço sobre os usos e destinos daquele lugar. Certa ideia de “pintura expandida” e certo “uso coletivo da obra” também presente na instalação “Entre o Azul…”já se apresentava alifundida a uma preocupação de caráter social espelhada nessa critica sutil a qualidade de arquiteturas que não favorecem a integração e não convidam ao convívio as pessoas que as habitam e frequentam. Mas para além dessa pesquisa sobre a cor amparada em autores como Josef Albers¹,estão como dissemos, presentes nas cogitações da artista os usos partilhados das obras que ela concebe á partir das situações que elas detonam e isto ecoa um compromisso ético-afetivo ancestral e culturalmente determinado pela comunidade afro-brasileira e afrodescendente da qual ela faz parte. A partilha, ou o convite à partilha, esta na gênese das estruturas comunitárias afro-brasileiras desde a micro organizações sociais, como a família, até as macroinstituições como os Quilombos.As práticas culinárias, por exemplo, são eventos que dão ensejo ao exercício do coletivismo que, não raro, mobilizam toda a família e outros núcleos comunitários que em torno dela possam orbitar. Não é sem propósito que a regência e a ordem desseseventos/acontecimentos emanam da mulher, matriarca, coluna vertebral dessa estrutura familiar e comunitária. “Comer e beber o Azul” ação designada muito apropriadamente como “Encontro/Performance” foi realizada em 2019, durante a Virada Cultural no SESC Pompéia, nesta ocasião a artista recepcionava o público epropunha uma comunhão pela ingestão de chá e tapioca feitos á partir da flor “Clitória Ternatea” que recebe esse nome por justamente ter o formato de uma vagina. Esse procedimento será repetido em “Alalaô: para ser ativado com alegria” também de 2019. Nas duas obras a gênese ancestral da autora ou sua origem étnica não se apresenta através de símbolos passiveis de serem identificados como representativos de sua condição racial e de gênero, contudo, eles se apresentam de maneira sutil evidenciando que a artista não contamina seu trabalho com uma narrativa simbólica lastreada numa mitologia que esta suposta e indelevelmente vinculada à cultura do afrodescendente, visão sem dúvidacolonizada e frequentemente ignora a complexidade do legado da civilização afro-atlântica quando a reduz a clichês que fatalmente empobrecem nossa compreensão desse fenômeno. A festa, na concepção afro-atlântica e afro-brasileira têm duas dimensões, uma sacra e outra profana, elas frequentemente se interceptam e convivem, as duas, no entanto, consagram-se enquanto espaço material da resistência subjetiva; esses eventos costumam ser multimidiaticos, isto é neles a culinária, a dança, a musica, a plástica, se organizam em ritos que, como dissemos, transitam entre o sagrado e o profano contrariando dicotomias que no Ocidente estão consagradas como, por exemplo, a oposição entre o Erudito e o Popular. O trabalho de Juliana dos Santos, como talvez não seja possível negar, é devedor dos caminhos desbravados por Hélio Oiticica, mas, é importante assinalar que ele é também derivado da sua condição humana, da adesão da artista e mulher negra com a sua própria história, a sua matriz cultural, lembrando que essa escolha não é um destino fatal e inevitável, pois, existem afrodescendentes que, por motivos diversos, não aderem à cultura afro-brasileira ou afro-atlântica e mesmo as contestam.Dada a sua densidade poética a instalação “Entre o azul o azul e o que não me deixo/deixam esquecer” contempla múltiplos significados, do dialogo com correntes contemporâneas da arte, as ilações com a cultura afro-brasileira, o rito profano e sacro estão compostos de modo a criar campo e oportunidade para avançar sobre territórios artísticos e conceituais (como a dança) que podem espessar ainda mais esse já denso manancial poético.

¹Josef Albers(1888-1976) artista-educador alemão que foi membro da Bauhaus e do Black Mountain College, autor de “A interação da cor” influente texto sobre uso e ensino das cores.

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