#PaçoEmTodoLugar | texto crítico de Ananda Carvalho

As ordens no paraíso

O trabalho artístico de Alice Lara elabora discussões sobre a representação do animal não humano e as relações deste com os humanos. Para iniciar este texto, é importante pontuar sobre a experiência de vida da artista. Alice sempre morou na zona rural do Distrito Federal e há apenas dois anos reside em São Paulo, desenvolvendo um mestrado na USP. Na Temporada de Projetos, apresentou uma série de pinturas desenvolvidas a partir de uma pesquisa no zoológico de São Paulo. Durante este período, com a autorização oficial da instituição, acompanhou o trabalho de diferentes funcionários e suas relações com os animais. 

Na produção das pinturas desta exposição, Alice reflete sobre a visita ao zoológico, concentrando seu olhar para os dioramas, espécie de cenários construídos nas jaulas. Esses cenários são atravessados pela perspectiva da experiência. Quem já não foi ao zoológico e ouviu uma criança frustrada por que o leão (ou outro animal) estava escondido atrás de uma árvore dormindo? Em algumas de suas pinturas, os animais ocupam apenas uma parte do enquadramento e não estão em primeiro plano, como em Onça dando a patinha. Em Recinto das cobras e Recinto azulado das cobras, as cobras se misturam aos galhos. Recinto dos elefantes propõe uma vista do animal através das grades. Em Urubus e cágados, os animais são posicionados sobrepostos, permitindo uma vista parcial de seus corpos. 

As pinturas de Alice experimentam pinceladas em intensidades distintas, dando a ver imagens mais figurativas em meio a outras mais abstratas. É interessante observar que a artista utiliza fundo gesso-crê na preparação de suas telas. A técnica, típica de pintores de Brasília, oferece uma textura mais aveludada e um fundo com um tom de bege. Durante o processo, desenha alguns esboços com carvão, que algumas vezes permanecem como traços do gesto artístico. Constrói diferentes camadas com tinta acrílica e tinta óleo e, por fim, seleciona os elementos que considera como mais importantes com verniz de cera. As pinturas de diferentes tamanhos também exploram espaços vazios da tela. Desse modo, a composição dos elementos parece brincar com o foco de uma câmera fotográfica e os múltiplos pontos de vista. 

Essa questão aparece também na expografia montada no Paço das Artes. Assim como o local onde vivem os animais no zoológico, o espaço expositivo é construído  como um cenário. A cor da parede remete a um universo infantil e a instalação de plantas, que dependendo do ângulo observado, impedem a visão total de algumas pinturas. A organização das telas no espaço expositivo também reflete sobre a experiência do público. As pinturas em que os visitantes são apresentados foram posicionadas no início da sala. Alice chama a atenção para a subjetividade da seleção de perspectivas, tratando da impossibilidade do que pode ser visto. Assim como a criança em Menina olhando ariranha e Menina, ariranha e bolsa de gatinho, o público da exposição As ordens no paraíso tem que procurar, perscrutar e, de tempos em tempos, dar uma olhadela. 

A dificuldade de visualizar um animal por inteiro é também um procedimento para desconstruir a metáfora de paraíso. Pode-se afirmar que é uma tentativa de não reproduzir a perspectiva idílica da natureza nos espaços do zoológico ou o ideal bíblico de todos os animais juntos na arca de Noé. É possível especular também sobre um retrato do contexto do ser humano: pequenos zoológicos seriam uma metáfora para os seres humanos isolados (ou alienados?) na sua vida urbana cotidiana? 

Durante o tempo que passou visitando o zoológico, Alice acompanhou as especificidades do seu funcionamento. Essa perspectiva do cotidiano do local emerge para refletir sobre um viés que não fica restrito aos animais. Em Juju e Rita, a tratadora, sem rosto, aparece no canto do quadro em meio às folhagens. Por outro lado, um produto do seu trabalho emerge em Bandeja de frutas, pássaros e ratos para alimentação das lobas guarás, uma espécie de natureza-morta (se recorrêssemos aos gêneros da pintura para classificá-la). 

A artista comenta que “a opressão do animal sempre vem acompanhada da opressão dos sujeitos humanos, especificamente nesse ambiente, tendo suas vagas de emprego e direitos trabalhistas ameaçados, desconsiderando a insalubridade e a complexidade de suas profissões, historicamente desvalorizadas”. E, aqui podemos pensar não apenas na situação do zoológico, mas no cotidiano de grande parcela da população mundial. Nas conversas que tive com a artista, concordamos que seu trabalho parte de um tema específico, mas a discussão engloba questões mais gerais sobre os atravessamentos entre natureza e cultura, considerando perspectivas sociológicas, entre outras. Diante dessa exposição e do contexto atual, ecoa a pergunta, como você, leitor, posiciona-se e age em relação a natureza que lhe rodeia? 

Governo do Estado de SP