A história dos nossos gestos
Jucelino, o outro
Com o traço em cruz de Lúcio Costa, o presidente Juscelino Kubitschek deu início aos planos de Brasília, uma nova capital para o Brasil, construída em tempo recorde entre 1956 e 1960. Apesar de simples, ainda uma rasura, a forma somava alguns sentidos. Aludia à doutrina católica e à interiorização bandeirante, mas também à racionalidade das diretrizes de uma cidade moderna. Indicava o exato encontro de avenidas onde se situaria o eixo monumental, sede de todas as instituições do governo federal, enquanto consumava o desejo do estado de centralizar o controle sobre os territórios de um país com tamanho de continente. “O gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse”, conforme alegou Costa em seu Plano Diretor, também ambicionava o exercício de poder sobre os corpos e suas representações.
Brasília foi a obra-prima de um governo pautado pela busca de “integração nacional”. Ao investir em estradas, energia, indústrias e comunicações, o “plano de metas” de JK desenvolveu as regiões, mas sobretudo procurou fortalecer seu vínculo com a nova capital, edificada estrategicamente no planalto central do país. Para dar marcha a um processo de modernização acelerado, era preciso propagar Brasília como uma imagem-síntese, um ponto de convergência em que as diversidades e desigualdades internas poderiam conciliar-se tendo em vista um futuro dito como próspero. Tratava-se de um avião prestes a levantar vôo, metáfora que o desenho cruciforme daquela urbanidade ainda inspirava.
A construção da cidade alimentou uma utopia de coletividade que o passar das décadas desmontou em definitivo. Talvez por isso, pela força das promessas fundadoras e pela certeza de seu fracasso, hoje, em pleno desmonte das instituições e do sistema de democracia representativa no país, Brasília tenha sido tomada como primeiro estudo de caso de A história dos nossos gestos (2019), de Haroldo Saboia. No projeto, cuja pesquisa inicial foi apresentada em mostra individual na Temporada de Projetos do Paço das Artes, o artista analisou arquivos fotográficos para especular sobre como identidades são afirmadas e disputadas no imaginário brasileiro.
Para aquelxs que de pronto detectamos desafios e riscos inerentes às representações coletivas, o título já introduz incômodos. O que revela e o que esconde uma história conjugada no singular e gestos plurais reunidos indiscriminadamente? Quem somos nós e o que torna esses gestos comuns, nossos? Quem os declara e quem os performa? Quais os termos dessas relações? Ao parafrasear o nome dado por Câmara Cascudo a um livro publicado em 1976, Saboia não quis reiterar por completo seus princípios, mas justamente tentou trazê-los à tona para enfrentá-los com criticidade e outras exigências éticas.
Cascudo foi um dos principais estudiosos da cultura brasileira no século XX. Produziu uma bibliografia extensa, baseada na observação de costumes. Um tanto quanto literária, recheada de causos e comentários subjetivos, a escrita do autor de alguma maneira desafiou o universalismo que na altura ainda predominava em teses sociológicas. Desafiou, mas não por isso deixou de exercê-lo.
Em História dos nossos gestos (Ed. Melhoramentos, 1976), uma coletânea de 333 verbetes reunidos para caracterizar um repertório corporal supostamente partilhado entre os habitantes do país, Cascudo alegou opor-se a qualquer “teoria geral”, ou ao anacronismo de se definir “um gesto nacional”. O alerta, todavia, não evitou que ele mesmo apresentasse como um “gesto made in Brazil”o ato de uma pessoa pedir o pé de um papagaio, dar-lhe ouvidos e, com isso, vangloriar sua condição de plageador. O verbete, assim, sugeriu a esperteza e a subserviência como estereótipos de brasilidade.
Outro elemento da pesquisa, uma fotografia da década de 1980, pertencente ao Arquivo Municipal do Distrito Federal, ajudou o artista a complexificar a assimetria dessas relações e comportamentos. Em pé, um trabalhador da construção civil curva o corpo para tocar a mão de uma estátua de Kubitschek que ainda estava estendida ao chão, antes de ser definitivamente erguida no memorial em sua homenagem. O movimento simboliza reverência do homem comum diante do ex-presidente. Por contraparte, ele demonstra um raro instante de equidade entre ambos os personagens, uma vez que o encontro hipotético sucede segundo um roteiro conduzido pelo trabalhador. No canteiro, o ócio e proatividade diante de uma figura de poder comprovam respeito, mas também alguma insubordinação.
O registro leva a pensar que somente a equidade dos processos –ou a chance de disputá-los enquanto sujeitos– pode subverter a disparidade das representação dos corpos e de suas imagens.
Não por acaso a maneira como Saboia se posicionou diante dessa fotografia e de todo o conjunto de mais de 80 imagens citadas foi traduzindo tais atitudes em visualidade.Para tanto, alterou noções de escala, procurou dar grandeza ao que a trivialidade do cotidiano ou a implacabilidade dos filtros sociais costumam invisibilizar, enquanto apequenou o monumental, oficial, legitimado. O segundo recurso do artista foi focar nas mãos dxs retratadxs como índice expressivo de ação, algo que alcançou após recortar detalhes das imagens e muitas vezes desprezar quase todo o entorno.
Dessa composição de um acervo de diferentes épocas, da edição de seus tamanhos e partes, resultou um imaginário sem rostos nem dados precisos de autoria, seja dentro ou fora de cena. Repetidas tanto em um slide-show quanto em um vasto panorama impresso, nas duas obras denominadas Integração nacional (2019), as mãos anônimas e seus múltiplos fazeres tornaram-se a questão central do projeto.As mãos firmam documentos, seguram escadas, lavam roupas, repousam no bolso do paletó, apontam o dedo em riste, carregam malas, tensionam algo cilíndrico com intenção de quebrar…
As ações permitem identificar narrativas de classe em elementos de uma cultura material preservada em quadro, como a moda, os objetos decorativos e as ferramentas de trabalho. Com uma dose de convicção oriunda de uma estrutura de imobilidade social historicamente sedimentada no Brasil, supomos que certas atividades intelectuais ou executivas caibam a membros da elite, enquanto tarefas manuais –ou “braçais”– estejam sendo executadas por pessoas do povo. Dentro de um repertório imagético compatível com essa herança colonial, o ponto de vista das classes dominantes jamais seria representado com imagens de mãos, talvez com bustos, certamente faces, capazes de dar filiação a ideias e virtudes individuais.
Ao se ater apenas às mãos, Saboia contribuiu para o enfrentamento de discursos logocêntricos, que terminam por contemplar indivíduos privilegiados (em sua maioria homens, brancos, ricos, cisgênero, com escolaridade alta) e sustentar seu exercício de poder simbólico, político e econômico.Se a supremacia da cognição hipervisibiliza esses sujeitos, o elogio à manualidade desponta com uma tentativa de torná-los não só concorrentes quanto codependentes de detentorxs de outros saberes e práticas. A mudança de prerrogativa diz respeito à responsabilidade de abarcar a luta de classes nas narrativas da arte e da sociedade, mas, de maneira transversal e talvez anterior a isso, aponta para a necessidade de recuperar o valor das experiências e dos corpos em tais construções.
A busca de histórias plurais, político e eticamente fundadas, para o que se pretendem ser os “nossos” gestos envolve, portanto, reconhecer a autonomia de cada indivíduo para criar e socializar entendimentos de si e do seu contexto, se possível sem mediações ou tutelas. A consequência desses gestos individuais em convívio seria o surgimento –nunca desprovido de antagonismo, resistência e negociação–, de identidades e memórias coletivas. Ou seja, se algo há de existir como “nosso”, que seja oriundo de condições de pertencimento e escuta entre pares, e não de atribuições verticais e violentas, muitas vezes inerentes às formulações de uma identidade ou memória dita nacional, da nação.
Em sua militância por uma pedagogia de liberdade e enfrentamento de uma colonialidade persistente e opressora, o educador Paulo Freire afirmou que “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar”.Entre o sujeito e o mundo, no vocabulário de Freire, se situa a pronúncia como campo de aprendizado mútuo. Tanto cerebral quanto corporal, necessariamente “ação reflexão”, segundo defendia o autor, esse gesto empodera enquanto faz transformar e ser transformadx.
A reciprocidade proposta ilumina a metáfora que Sabóia investiu em Didática do contato (2018). Em um vídeo de apenas uma cena, uma mão espalmada toca uma mesa com cautela. Após alguns segundos, movimenta-se de modo a deixar marcado seu rastro úmido, e levar na pele, em contrapartida, a sensação da superfície. A série ainda possui experimentos em escultura. Subintitulada O espaço ensina o que a mão e o chão já sabem, a obra teve montagens anteriores, sempre envolvendo quatro moldes de mãos em escala real. Sua implantação, contudo, costuma ser site-specific. As peças já foram situadas discretamente nos vértices do jardim retangular de uma galeria, como se ambicionassem conter seus limites e neles experimentar diferentes pesos, atritos e contágios.
No sala do Museu da Imagem e do Som (MIS), temporariamente ocupada pela programação do Paço das Artes, as quatro partes foram reunidas logo no canto de chegada. Mesmo em repouso, continham potência e prontidão. Lado a lado, expressavam os termos mínimos para que uma parceria se consumasse no futuro, mas de fato essa parceria já havia ocorrido para fundar o trabalho. As mãos em molde eram do artista e do especialista em gesso com quem as concebeu materialmente. Por coincidência, chamava-se Jucelino, de sobrenome Pereira da Silva, pernambucano residente há 30 anos em São Paulo.Junto a Saboia, agregou repertório, corpo e gesto na escrita de algumas dessas histórias tantas, próprias enquanto linguagem, mesmo que tornadas outras em um vocabulário de país.