Santiago-Fogo
Muito já foi dito sobre as imagens fotográficas. Para Roland Barthes, a fotografia apresenta-se a partir de um caráter indicial, um “isto-foi” de algo captado pela câmara no passado que ecoa até o presente enquanto imagem. Essa reminiscência produzida pela luz salienta o aspecto da morte das coisas, a inexorável impossibilidade de conter o fluxo do tempo. O fazer fotográfico seria, portanto, uma tentativa de reter a memória em um suporte material, ele mesmo também efêmero. O tempo, elemento tão premente quanto a luz para a fotografia, é momentaneamente colocado em suspensão ao se captar um instante.
Entretanto, não há fotografia sem aparelho, e este opera ativamente como fornecedor de “programas” técnicos, como diria Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta. É manipulando o aparelho como um brinquedo, extraindo dele suas potencialidades ou até subvertendo-as que o fotógrafo pode se expressar. Assim, os aparelhos, e consequentemente a técnica, os suportes e a materialidade, juntamente com a luz, o tempo e o olhar do fotógrafo, exercem também papéis significativos na constituição da imagem. A realidade captada mescla-se às possibilidades do aparelho e à subjetividade do fotógrafo, produzindo signos visuais que se tornam linguagem.
O cinema, irmão próximo da fotografia, incorpora todas essas questões e ainda acrescenta as problemáticas da narrativa e da edição, da sonoridade e do texto. No cinema, o tempo transcorre de maneira diversa. Ao mesmo tempo em que denota algo que já foi, admite, de forma ainda mais assumida, a ficção, que pode se dar em um tempo presente ou até futuro. A experiência de assistir a um filme nos transporta para outra dimensão temporal, marcada por ritmos, cortes, acelerações ou ralentamentos.
Ainda que dialoguem com todas essas questões, os trabalhos de Felipe Chimicatti e Pedro Carvalho não podem ser explicados apenas através das discussões semióticas sobre a linguagem, já que trazem em si cargas poéticas que se sobressaem. De fato, as fotografias e os filmes produzidos pelos artistas para o projeto Santiago – Fogo tratam diretamente da fugacidade do tempo e da tentativa de fixar visualmente a memória. Entretanto, o aspecto fugidio de suas imagens não busca constituí-las como documentos fidedignos de um instante decisivo, mas sim acentuar sua fragilidade enquanto captura poética do efêmero. Nas palavras dos próprios artistas, o que se busca poeticamente aqui é um “distanciamento entre o referente e a imagem”.
As duas séries de fotografias, intituladas Santiago e Fogo, referem-se, respectivamente, às ilhas de mesmo nome localizadas no arquipélago de Cabo Verde. Embora os locais sejam bastante específicos e a experiência de estar lá seja determinante na constituição da força poética dos trabalhos, os artistas não se dedicam a meramente produzir testemunhos documentais do que ali viram. Poucos são os locais reconhecíveis que encontramos nessas imagens. Em vez disso, o que vemos são espaços vazios, desolados e imprecisos, que parecem se arrastar no tempo, mesmo estando prestes a se transformar ou a se esvair a qualquer momento. Na série Fogo, as imagens coloridas e desgastadas, captadas através de um anacrônico filme em super-8, são retiradas de suas sequências cinematográficas e apresentadas separadamente como fotografias em um narrativa fragmentada. Essas operações da linguagem, realizadas pelos artistas ao optarem por dispositivos e suportes específicos, produzem imagens poéticas que vão além do documental, não só por suas qualidades estéticas, mas também por incluir propositalmente afetos e subjetividades. A materialidade do suporte analógico antigo escolhido confere às imagens uma saturação cromática vaporosa, um certo desfocamento e ranhuras que reforçam sua efemeridade. Efemeridade esta que não é apenas figura de linguagem, mas que ocorre, de fato, na ilha de Fogo, já que muitos dos locais fotografados pelos artistas já não existem mais, em função da erupção violenta do vulcão presente na ilha, ocorrida no mesmo ano em que os artistas lá estiveram.
Em Santiago, as fotografias em preto e branco exibem restos de construções, espaços ermos, estradas que não levam a lugar nenhum ou ruínas das prisões salazaristas que marcam o passado colonial de Cabo Verde. São imagens que mostram uma história pontuada por abandonos, violências e isolamentos. A desolada herança da colonização surge ainda de forma mais aterradora no filme Cemitério de brancos, em que as sepulturas dos dominadores jazem como ruínas, lembrando-nos do destino que o tempo reserva a todos.
Nos trabalhos de Chimicatti e Carvalho, são poucos os habitantes desses amplos espaços ermos. Apenas no filme Feira ou em algumas fotografias da série Fogo, vemos alguns personagens locais, como um cão que nos encara profundamente ou um vigia que reconhece a presença dos fotógrafos.
Esse olhar que vem de longe nos faz perceber que, ainda que retratem distâncias e desolamento, as imagens não são anteparos que nos separam do outro, mas meios de transmissão de afetos, sensações e questionamentos que atravessam tempos e espaços. Através do olhar sensível, que nos é compartilhado nestas poéticas imagens de Pedro Carvalho e Felipe Chimicatti, rompem-se as distâncias que nos isolam como ilhas de um arquipélago, lembrando-nos de que mesmo que estejamos circundados por vazios e pela força aterradora do tempo, há sempre um mar comum que nos rodeia e que inventa novas ondas a cada soprar dos ventos.