Visitação
06/10/2005 a 29/10/2005
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Tente pensar na realidade em que você vive. Tente pensar para além dos espaços protegidos em que habita. Tente pensar pela lógica do estranho. Que atitude você escolheria? Irônica? Carnavalesca? Contraditória?
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“Faça uma pintura doente ou um readymade doente”. Marcel Duchamp, em Green Box Desconcerto. Angústia. Repulsa. Cada sociedade vivencia a seu modo a tradução desses sentimentos. Não se trata de crise, trata-se do enfrentamento da obsolescência dos sistemas organizados pelo ser humano e de um momento de expansão de suas formas expressivas. É quando o mundo causa a impressão de ser a sua imagem vista pelo ângulo da loucura, do alternativo, do extraoficial. Tente pensar na realidade em que você vive. Tente pensar para além dos espaços protegidos em que habita. Tente pensar pela lógica do estranho. Que atitude você escolheria? Irônica? Carnavalesca? Contraditória? Neste início de século XXI, vivemos em uma sociedade sob o signo da violência e da vulnerabilidade, que se oculta sob falsas noções de proteção e privilegia os interesses privados em detrimento de uma construção mais coletiva de realidade. Em contraponto, é possível observar manifestações singulares que enfrentam essas questões por meio de sentimentos ora cínicos, ora de indignação. No universo expressivo, também encontramos, em situações repletas de tensão, pequenas ações ou atitudes desestabilizadoras da visão vigente. Elas possuem a capacidade de movimentar e afetar as realidades que tocam. “Vorazes, grotescos e malvados” procura discutir, nesse âmbito, problemas de valor e postura em práticas de vida e nas práticas artísticas que coabitam universos sociais e políticos permeados de perda de controle e precariedade. Nesta exposição, as escolhas são baseadas na atitude e em como os criadores nela reunidos vêm se articulando em torno dessa realidade diversificada. Eles foram escolhidos porque revelam uma inteligência voltada ao inconformismo, à hibridez e à desorganização das formas. As circunstâncias por eles vivenciadas dizem respeito a processos de degeneração e violência social, de corrosão do sentimento ético, tanto no campo da macro quanto da micropolítica. Inconformados e impuros, é dessa maneira que Carlo Sansolo e Erika Fraenkel, Dora Longo Bahia – acompanhada de Aline van Langendonck. Amanda Mei, Ana Elisa Carramaschi, André Drokan, André Komatsu, Andrezza Valentin, Dario Felicfssimo, Fellipe Gonzalez, Hugo Frasa, Letfcia Larín, Marcelo Cidade, Mariana Juliano, Marie Lanna, Mauro Giarda, Naiah Mendonça, Nicolas Robbio, Olivia Helena Sanches, Paula Garcia, Renata Har, Thais Albuquerque e Wagner Viana – Luiz Duva, Marcelo Cidade e o VJ Spetto mostram suas experiências desestabilizadoras. No campo das estratégias sensíveis da arte contemporânea, há o convívio dessas manifestações com aquilo que Edmond Couchot denomina “desespecificação das práticas artísticas” e que revela, segundo ele, uma hibridação generalizada, estendida agora a todo universo dos modelos fornecidos pela tecnociência. Por meio desse raciocínio, podemos compreender uma nova forma de organização das proposições artísticas que denota ondas expansivas e libertárias. Tal circunstância é assumida como uma forma de instaurar uma visão particular de mundo e furar bloqueios na constituição de um percurso alternativo nos universos de linguagem.
Essas circunstâncias são também observadas nas novas sensibilidades fornecidas pelo mundo urbano-digital das transmissões e construções ao vivo. Nelas, as mudanças de percepção são redimensionadas pelas dinâmicas sociais nômades e online das redes de comunicação. Trata-se da condição contemporânea de “viver intensamente o tempo presente”. O filósofo Horácio usava o termo carpe diem para designar a prática de aproveitar o presente sem pensar no futuro. Já para o filósofo Vilém Flusser, o tempo é abismo em nossa sociedade pós-industrial; é como um vórtice do presente que suga tudo. Para ele, o presente é a totalidade do real, instância em que todas as virtualidades se realizam. Em extensão às ideias de Horácio e Flusser, verificamos hoje que viver o tempo presente é viver sugado pelas suas múltiplas realidades vorazes, traduzidas como verdadeiros espaços virtuais de constituição do sujeito na contemporaneidade.
Nesse fluxo de vivências instáveis e imprevisíveis, é possível notar que algumas ações artísticas desenvolvem-se em plena zona de risco. Trata-se de uma metáfora para a compreensão de um mundo desmontado. Como um método de intervenção e reversão às normas estabelecidas, tais ações apresentam-se como uma nova perspectiva artístico-política localizada entre as esferas pública e a privada. Dessa maneira, é acentuado o fato do universo criativo não ocupar na sociedade um papel complacente e, sim, o de assumir uma postura crítica e uma força desestabilizadora, que seja capaz de originar gestos de insubordinação e novos processos de subjetividade.
Como pequenas subversões que determinam novos processos de linguagem, faz parte da estrutura dessas práticas que a nossa orientação de mundo falhe. Muitas de suas experiências desenvolvem- se como intervenções críticas entre o espaço institucional e não institucional da arte, ou como um antídoto às normas preestabelecidas de linguagem.
As indagações sobre a espetacularização da sociedade e seus rituais coletivos, Carlo Sansolo e Érika Fraenkel respondem com o riso nervoso e a paródia em Abject Station – Jueguitos (2005). Nessa instalação, eles assumem o universo das imagens que circulam na Internet, dos brinquedos infantis e do videogame como banalizadores da violência e capazes de alternar ternura e ódio. Como um pequeno espetáculo produzido a partir de noções de precariedade e agressividade, nesta obra simulam ambiências e organicidades desordenadas – como uma cápsula dentro de outra cápsula – tanto quanto questões demolidoras relacionadas à produção simbólica e à imbecilização dos discursos filosóficos na contemporaneidade.
Com a visão dirigida à desmaterialização e ao disforme, Dora Longo Bahia dá prioridade ao processo, não ao produto final, e ironiza os paradigmas tradicionais de autoria, curadoria, exposição e mercado da arte. Para tanto, ela sugere em ( ) (2005) uma espécie de apologia da deriva ao empreender uma subcuradoria e propor uma ocupação cíclica e colaborativa, a partir do convite feito a um conjunto de jovens artistas para criarem dezesseis exposições individuais de um dia (das 17 às 19 horas). Além disso, gera um fanzine e um bar no espaço institucional, disponibiliza ao público instrumentos de rock para sessões abertas aos sábados e exibição de filmes com pipoca aos domingos. Tais experiências ocupam um lugar extraoficial no interior das articulações institucionais. Ao utilizar-se destas ações, ela opera nesta obra por meio de construções em abismo (como a curadoria dentro da curadoria e a exposição dentro da exposição), elevada agora à dimensão desconstrutiva do próprio circuito da arte.
Longo Bahia traz o humor e a transgressão (ou a carnavalização), fruto de suas investigações em torno da definição da arte como jogo, símbolo e festa do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer. De sua pesquisa, traz conceitos de Gadamer, nos quais o “jogo” é considerado um movimento que não está ligado a uma finalidade última, o “símbolo” é a possibilidade de reconhecimento de nós mesmos e a “festa” é a coletividade e a essência da comunicação recuperada de todos, com todos.
Luiz Duva oferece, em Grotesco Sublime Mix (2004), uma nova proposição de linguagem para a imagem e som em meios eletrônicos. Nesta videoinstalação, a partir da manipulação em tempo real de vídeo, ou o chamado vídeo ao vivo, ele trabalha em três telas a sonoridade do elemento visual como uma composição audiovisual, em que a imagem tem a capacidade de produzir som. Nesta única sessão de 16 minutos (sem edição adicional) – por ele documentada e reapresentada contínuas vezes através da recombinação e repetição (o looping) no ambiente instalativo – há três corpos que se decompõem em performance. Esse tipo de visão orgânica permite a inserção do vídeo como elemento de indeterminação e acaso. Contudo, é com esse tipo de ação efêmera da ordem do improviso que Duva devolve tal experiência ao campo representacional. O artista cria imagens minimalistas de forte impacto poético, na qual há a distenção do tempo e a desconstrução do movimento e do som.
No ambiente sensório que Luiz Duva produz, ele não oculta a estrutura de montagem dos equipamentos. Ao contrário, além dele dar visibilidade e os incluir nos significados da obra, ele também permite ao público neles interagir por meio da sombra de seus corpos que interferem nas imagens projetadas nas telas. Recupera, assim, a partilha da obra com o público, tão definidora dos espetáculos de live-images que proporciona na cena eletrônica.
Em seu trabalho, a imagem e o som são manipulados por um tipo de ranhura, ou scratch, no time line da edição ao vivo. Eles travam um profícuo diálogo com a arte cinética: possuem ao fundo um pulso de luz que cintila durante todo o decorrer da obra, para que o público “entre” neles de uma forma mais imersiva e para que os sentidos possam também ser apreendidos de maneira mais sinestésica e tátil. O espaço arquitetônico por ele constituído possui, assim, diferentes escalas de leitura de acordo com as gramaturas imagéticas depositadas nas telas. É neste conjunto de ações disformes, estabelecidas com a linguagem, que reside o risco da invenção em sua obra, à medida que essa pulsão de síntese dá uma autonomia à imagem perante as suas estruturas narrativas e performáticas. Por meio dessa vivência experimental. Luiz Duva nos sinaliza que não é a nossa subjetividade que explica essas imagens e sons, mas é a partir delas que teremos acesso a essa subjetividade.
Marcelo Cidade apresenta dois trabalhos que coexistem na chamada intertextualidade: a presença de uma confluência de vozes entre eles e o restante da exposição, e a presença de um fluxo de respostas entre todo o conjunto possuem a capacidade de significar por meio da dialética existente entre uns e outros. Um desses trabalhos é Intramurus (2005) – uma intervenção com cacos de vidro, instalados ao longo do alto dos painéis existentes no espaço expositivo do Paço das Artes – e o outro, Quando Não Há Diálogo (2005). Este último, um vídeo de sete minutos, aborda uma situação de desentendimento nos bastidores de uma exposição de arte, documentada em tempo real e posteriormente editada e transformada em ficção. Em ambos, há o objetivo de empreender uma metacrítica aos espaços institucionais de maneira mais ou menos profunda/agressiva, como uma forma de posicionamento diante da dimensão pública e social da arte. Neles, Cidade desloca o foco do objeto artístico e chama a atenção para as estruturas “protetoras” da obra, das quais frequentemente não nos damos conta. Ao problematizar em seu trabalho o espaço crítico do cubo branco, ele faz referência ao aspecto não oficial desse tipo de espaço e realiza pequenas subversões, ou alterações, como forma de interferência nos ambientes domesticados da arte.
O VJ Spetto cria um espaço para a instalação de dupla mão e lança visões divergentes. Em O Barato Sai Caro (2005) ele promove uma crítica ácida e voraz ao universo das classes políticas nacionais e internacionais. Nele, ele mostra, de forma ambígua, a animação digital de pequenas baratas que se movimentam sobre um jorro ininterrupto e labiríntico de imagens de líderes políticos e governantes de Estado, como o americano George Bush e o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Tal atitude é afirmada pelo contexto social em que Spetto se posiciona – como um VJ ou um visual-jockey -, onde trata-se ele não populariza apenas a performance audiovisual, mas os próprios meios de produção. Seguindo a lógica de gerar deslocamentos e inversões entre as figuras públicas do poder e os espaços sacralizados da arte (como galerias e museus), Spetto os dessacraliza por meio da ironia e, por outro lado, por meio da contaminação de sua obra com os ambientes de massa da cena noturna eletrônica.
O trabalho do VJ Spetto refere-se ao recolhimento e ao reprocessamento dos resíduos de uma sociedade capitalista, pautada no consumo imagético e gerenciada por meio de bancos de dados distribuídos pelas mídias de massa, como a Internet e a televisão. Essas imagens são consideradas imagens-mercadorias, commodities, extraídas de um acervo de imagens tecnológicas produzidas no mundo contemporâneo.
Para o VJ Spetto, sua ação criativa produz uma forma de documentário em que a imagem e o som são inscritos de forma imprevisível e em tempo real. Esse fenômeno é possível porque o VJ, ao se apropriar e ao remixar as imagens, desconstrói e reordena seus elementos visuais sob o pretexto de uma exploração documental em torno dessas imagens. Ele afirma que, por se tratar da reutilização de um banco de dados universal (extraído da mídia impressa, televisiva ou online), o trabalho do VJ consiste em documentar o inconsciente coletivo imagético da nossa atualidade.
Esse conjunto de interferências criativas acima relacionadas tem assim a propriedade de interagir como uma espécie de sintaxe radical ao veicular contra-informações no próprio sistema simbólico. Uma parte considerável de sua força encontra-se menos em seu estado de acabamento e mais em seu estado de inacabamento, na efemeridade e no caráter processual das experiências como um todo.
Para a psicanalista e crítica de arte Suely Rolnik, hoje, a resistência tende a não mais se situar por oposição à realidade vigente, numa suposta realidade paralela, mas seu desafio é “enfrentar a ambiguidade desta estratégia contemporânea do capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do capitalismo na potência criadora, mas negociando para manter a vida como princípio ético organizador“. Do abismo, como num momento de transição, os criadores aqui reunidos discutem problemas de valor nas práticas artísticas sob esta nova lógica e assim plasmam seus universos vorazes, grotescos e malvados. Vorazes porque devoram, subvertem ou consomem a realidade em tempo presente; grotescos porque são incompatíveis com as normas preestabelecidas da linguagem e revelam a expansão das formas expressivas; malvados porque enfrentam constantemente os circuitos de risco da produção artística, posicionam-se diante de suas idéias e são como vozes destoantes no cenário brasileiro por suas atitudes, modos de comportamento e reflexão social.
Embora façam parte, os sentimentos neles contidos não são de destruição ou de fracasso, e sim – como em tantos outros momentos da vida e da arte – de resistência e de abertura a outros pensamentos e imagens.
Referências bibliográficas COUCHOT, Edmond (2003). A tecnoioçie na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
FLUSSER, Vilém (1983). Pós-história: Vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades.
ROLNIK, Suely. “Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer. ..”, In: Caderno Videobrasi/. vol 1 no. 1. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, v. 1, n. 1, 2005.
* Christine Mello foi curadora convidada para a Temporada de Projetos 2005