Terreno

Visitação

09/02/2004 a 07/03/2004

Nas obras do artista, o embate entre o corpo e o mundo acontece nos refugos da rua, no espaço simbólico do museu, no território vivencial da praia, em qualquer lugar, para gerar não-lugares e sugerir uma possível e latente transcendência.

—œ…e os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada contudo verdadeiros.— Fernando Pessoa —œNão tenho outro modo de conhecer o corpo humano se não vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele.— Merleau-Ponty

O terreno no qual Carlos Mélo atua não é preparado senão por seu olhar arguto e sua capacidade ritualística de se empossar do espaço. O embate entre o corpo e o mundo acontece nos refugos da rua, no espaço simbólico do museu, no território vivencial da praia, em qualquer lugar, para gerar não-lugares e sugerir uma possível e latente transcendência. O corpo como apêndice do mundo, complemento do espaço e acusador de ausências. Aos poucos, o que este artista está constituindo é uma filosofia, e não apenas uma trajetória artística. Uma forma de atuar no mundo, de materializar essas imagens, situações e recortes do real que se apresentam, a ele, em estado de potência. Em —œTerreno—, mostra apresentada no Paço das Artes, Carlos Mélo reúne um volume expressivo de suas investigações dialéticas acerca do universal, da racionalidade, do corpo vivido, do sagrado e do que está afetivamente no —œentrelugar—. Apesar de os trabalhos formarem quatro momentos distintos e independentes, algumas conexões entre estes instantes podem ser propostas, sem se perder o sabor de cada parada. Nova fornos é a maior sequência de dípticos sobre um tema já realizado pelo artista. A ausência de água —“ elemento imprescindível à vida —“ realidade tão comum em comunidades do sertão nordestino e de zonas secas de várias partes do mundo, é rebatida em situações de desapego sentimental, de aridez emocional, em que se espera a acolhida tecendo uma trama afetiva. O tensionamento entre o local e o universal, entre a terra e o transcendental, é constatado ainda no diagrama Mergulho no self sujo, uma sobreposição do texto sobre Narciso, em latim, às ramificações do rio Capibaribe, principal curso d—™água do estado de Pernambuco. Sem o espelho d—™água, como Narciso pode se contemplar? Nova arte moderna pontua a retomada do vídeo, recurso muito utilizado no início do trajeto de Mélo, em que a câmera registra as vivencias do artista; neste caso, a sua interação com a máquina e o espaço após tomar um chá cerimonial. Ritualisticamente, Carlos Mélo vai buscando enformar seu corpo nas delimitações do enquadramento do vídeo. Posições, ângulos e tentativas não emergem não apenas por acaso, mesmo não havendo uma coreografia pré-estabelecida, mas pela consciência que o artista tem de sua corporeidade e pelo controle dos equipamentos, gerando sucessivas edições e reformulações durante o processo do vídeo. Não obstante o receio de incluir a audiência em suas até então pós-performances, Mélo sugeriu, para o Paço, seu experimento Sim, toma, e outra vivencia do artista. Desta vez, o trabalho só faz sentido em espaços com grandes fluxos de pessoas, ainda mais quando se trata de uma situação tão carregada de simbolismo e de expectativas, como um vernissage o próprio artista. Negando e afirmando mais uma vez a realidade e cavando seu espaço afetivo, Carlos Mélo causa uma ansiada ausência presente.
* Carlos Mélo foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2004
Governo do Estado de SP