Visitação
23/09/2001 a 21/10/2001
No Paço das Artes a artista apresenta uma série de 20 peças e uma instalação em áudio que constituem a obra Placenta Writing, e o dvd d’atiste Lovers.
A câmara passa rapidamente por rochedos cinzentos e marrons, revelando apenas estruturas abstratas enquanto se ouve ao fundo uma música tradicional americana: “Children, go where I send thee—. Com delicadeza, a câmara faz um giro sobre uma paisagem rochosa desértica nas montanhas rugosas de alguma região do Oriente Médio, quando se sobrepõe a palavra “zero— seguida dos correspondentes em árabe, hebraico, iÃdiche e japonês. Sua sobreposição à maneira dos antigos dicionários poliglotas convida à comparação. Mas as traduções não oferecem nenhuma conformidade. Seguem-se outros termos poliglotas — “time—, “language—, “translator— — reforçando cada vez mais a impressão de que está sendo focalizado o problema da tradução e do entendimento. A panorâmica revela uma enorme planÃcie com um rio. E diante do pano de fundo grandioso de um vale que vai se abrindo descobrimos de repente um japonês! Um corpo estranho — porque inesperado — num paÃs do Oriente Médio. Deve ser um turista, já que surgem mais japoneses munidos de chapéu , câmara fotográfica e mapas. Um guia turÃstico dirige umas poucas palavras — não traduzidas — ao grupo.As letras da palavra “question— surgem na tela. O distintivo com as bandeiras do Japão e de Israel no chapéu de uma das turistas confirma que estamos no deserto de Neguev. Não longe do grupo estão passeiam sobre uma mureta dois pombos, um branco e um cinza. A tela se transforma e fica branca. Eis as primeiras tomadas do filme Political Mistakes (1998), de Betty Leirner. à primeira vista trata-se de um jogo sutil de observações, irritações e informações retardadas; mas na realidade visa-se a tradução, a compreensão, a leitura de imagens — ou melhor dizendo: as impossibilidades dos procedimentos de tradução.A fotógrafa, poeta e vÃdeo-artista brasileira Betty Leirner mora há anos na Alemanha. Isto não impede que ela faça viagens nas quais pode experimentar a sensação de estar-fora-de-si que a persegue em toda a sua obra. Desde 1994 rodou mais de trinta curtos “vÃdeo-poemas—, alguns no Japão, outros em Portugal, no Brasil, na França e na Alemanha. Assim como seus livros são escritos em várias lÃnguas, seus filmes também são falados simultaneamente em várias lÃnguas. Mas nunca se trata de simples tradução. O sincretismo das lÃnguas é apenas um modus vivendi, a convivência rotineira de várias lÃnguas que a própria autora também pratica em seu dia-a-dia. PoderÃamos falar de uma estética do desterro. Mas, como se trata de um processo sem lamentações, já que a autora se adaptou a esse desterro (por opção) sentindo-se claramente à vontade com ele, é melhor encará-lo como uma forma de cosmopolitismo. Um cosmopolita é um cidadão do mundo, não necessariamente um viajante, que projeta sua pátria em categorias que ultrapassam os limites dos estados nacionais.Uma das pátrias de Betty são as lÃnguas. Raramente encontramos textos falados em seus filmes, comentários são escassos, porém palavras-letreiros aparecem frequentemente. As imagens estão intimamente ligadas à escrita. Um espaço filmado, no qual se inscrevem palavras, destrói qualquer ilusão de representação da realidade. As letras sobrescritadas fazem com que a superfÃcie da imagem apareça como uma camada, como um material retocado. O espaço pré-cinematográfico (por ex. Israel como paÃs real e fÃsico) e o espaço modificado pela escrita, pela música e pela montagem (Israel e Jordânia como paÃses de political mistakes) estão osmoticamente unidos pela personalidade da autora e artista, por uma membrana fina, sempre perceptÃvel. O método de trabalho cinematográfico de Betty visa, em última análise, um espaço poético, no qual se produz conscientemente uma sensação, uma atmosfera, uma materialidade, no qual as coisas perdem o ônus de serem testemunha e documento. Sentimos em seus filmes muita liberdade. E sentimos também que lidamos basicamente com propostas e sugestões. Por isso poderÃamos chamá-los igualmente de ensaios cinematográficos ou videográficos.Os letreiros nunca são usados para narrar algo, e sim para provocar associações em torno do tema. Quando num giro panorâmico despretensioso sobre a paisagem rochosa de Israel aparecem as palavras “price” (preço), “root” (raiz), “rifle” (rifle), trata-se de uma tentativa da autora de revelar a dimensão histórica que está por trás de cada imagem. A intervenção linguÃstico-tipográfica descerra camadas arqueológicas escondidas debaixo da camada fixada pela câmara. Desta maneira, o presente pode ser entendido como estágio de um processo histórico. Podemos perceber o estado presente como algo que assim veio a se tornar, e o sujeito aparentemente focalizado é entendido como algo que pode ser modificado. Em lugar de uma simples sequência cronológica linear manifesta-se uma representação espacial na qual percebemos simultaneamente o que aconteceu potencialmente nesse espaço. Mesmo os elementos historicamente não realizados, os projetos não executados, entram através dos letreiros no espaço visÃvel em forma de montagem: “pain” (dor) e “blame” (culpa). Com isso, a imagem propriamente dita é hipotetizada — um processo ligado à s melhores tradições ensaÃsticas. Outra pátria de Betty Leirner é a música. Todos os seus vÃdeo-filmes são cuidadosamente sonorizados com peças escolhidas de músicas já existentes. Excetuando-se os poucos trechos selecionados, inutiliza-se todo o resto do som original. As imagens mergulham numa mudez que consiste sobretudo da ausência de acontecimentos sincronizados, de modo que se produz insistentemente um efeito contrário aos processos de ilusão utiliza dos nas reportagens jornalÃsticas e nos documentários. A música por sua vez não serve apenas para dar um toque emocional à s cenas, já que é escolhida em função de sua letra, de frases isoladas, de palavras ou de analogias sonoras. Depois da abertura descrita acima ouvem-se, em Political Mistakes, três músicas que marcam as sequências separadas também pela intercalação de telas brancas: uma voz grave e rouca canta um lamento árabe (“eloignement“, distanciamento); enquanto isso vemos japoneses, árabes e judeus na praça diante do muro das lamentações; sobre os telhados tremula a bandeira de Israel, um tanto deslocada entre antenas de televisão e refletores e sensores. Depois segue uma canção lamentosa judaica (“kaddish“, a reza dos mortos) acompanhada de closes de mulheres que rezam e choram diante do muro das lamentações, relÃquia do antigo templo judeu, filmada com uma intimidade chocante. Por fim ressoa uma música ligeira árabe para acompanhar cavaleiros palestinos de olhares altivos que se aproximam da câmara a galope, cavalgando seus cavalos de raça. Enquanto isso acontece, novos letreiros com suas traduções incompatÃveis continuam a passar por cima das imagens. Um dos aspectos incomuns do filme é a sua coesão baseada, por assim dizer, numa estrutura etimológica, no arranjo de um grupo de palavras afins, onde a tradução está ligada ao entendimento, a comparação ao acordo, a concordância à reconciliação — mas tudo isso é realizado apenas como acontecimento potencial. Aliás, Betty Leirner é claramente uma artista da linguagem que gosta do jogo de palavras e sons manuseando-os com virtuosidade para além das fronteiras linguÃsticas.No final do filme, depois do close de um longo olhar aberto sobre a câmara, viramos a vista para uma água cristalina, azul clara, tão transparente que podemos ver os peixes nadando entre as pedras. Apenas essa abertura e essa transparência poderiam contribuir para uma solução dos intrincados problemas no Oriente Médio, já que a transparência significa, em última análise, compreensibilidade e cognoscibilidade (de intenções). Mas podemos confiar nessa transparência coletiva? A própria autora, no epÃlogo que segue aos créditos finais, parece pouco disposta a assumir uma avaliação por demais otimista: na água azul transparente de um enorme aquário submarino, os filhos de uma tradicional famÃlia israelense observam, de olhos arregalados, tubarões. A transparência é ainda uma outra “morada” de Betty Leirner. Em seus trabalhos plásticos, fotográficos e cinematográficos é recorrente o emprego de materiais transparentes, como por exemplo, o gelo, o vidro, a água, a luz. Em Japanese for Beginners (1998), medusas transparentes flutuam na água ensolarada de cor azul claro enquanto se ouvem sentenças suaves de um conto de fada em japonês (Urashima Taro). Movidos por contrações, os corpos das águas-vivas deslizam como formas de luz, claras e estranhas, por um espaço que é ele mesmo um meio transparente que absorve a cor do céu. Em Unphotographable (1996), duas mãos masculinas viram e apalpam uma pequena escultura de gelo tendo como fundo uma paisagem congelada. Uma música romântica de Chet Baker se arrasta indolente enquanto a luz invernal se quebra no objeto de gelo: unphotographable. Na parte final de Caution: Chain (1999), as mãos equilibram quatro esferas transparentes que, por sua vez, refletem em si os espaços ao redor. Em Voz interior (1997), uma excursão à s paisagens naturais do Brasil, aparecem novamente, ao lado de jacarés, rebanhos de gado e cavalos selvagens que se lançam ao rio, peixes em águas cristalinas: a imagem onÃrica de uma natureza exuberante, de um cardume de lucios enormes que pululam à s margens do rio. A transparência talvez lembre, nesse caso, uma comunidade cósmica, mas o que Betty Leirner realmente procura transmitir parece ser o olhar ilimitado, a intensidade da visão e uma redefinição do espaço plástico. Trata-se de expor cor e forma (ilimitadas) que, na vida do dia a dia , costumam a tudo definir — e com isso, a tudo restringir.Sofrendo com as delimitações, que se refletem, por exemplo, na oposição de ideias de origem nacionalista, Betty Leirner faz surgir o desejo de representar o indefinido, aquilo que ainda não foi determinado de modo definitivo. “From this point, the seed of possibility for representing emptiness was born”[Deste ponto nasceu a semente de uma possibilidade de representação do vazio] (Leirner). O vazio não se encontra apenas na presença de materiais transparentes, ele se apresenta também na ausência de sincronismos de som ou na recorrente brancura da tela que é antes de tudo uma ausência de imagens.A desmaterialização do transparente porém nunca é completa. Os materiais translúcidos assumem uma leve tonalidade deixando transparecer partes do ambiente, mas sempre como uma ideia fugaz. Betty Leirner gosta dessa materialidade reduzida, dessas tonalidades suaves e claras que se localizam entre as cores primárias definidas, tendendo mais para o azul claro, o bege e o pastel. Daà também a sua predileção pelo Japão, um paÃs de entretons, um mundo em que se tem apreço por fenômenos fugazes, passageiros, revogáveis, em que as paredes entre ambientes opostos são finas como papel. A poesia nasce da insegurança, da frugalidade, da suavidade.Em Hiroshima Station (1999) uma voz de castrado canta uma música barroca inglesa enquanto body builders japoneses posam semi nus. As tomadas das peles suadas e lustrosas são seguidas de cadeias de colinas distantes na luz rosada do entardecer e de nuvens vaporosas. O clima poético e frágil nasce do contraste entre a música barroca, delicada e rebuscada, e a massa bruta dos corpos. Uma música semelhante se ouve em Miraculous Love—s Wounding (1999) acompanhando os movimentos contidos de um boneco de madeira de rosto branco e lÃvido, vestido de quimono. Um close do rosto lúgubre que se despede é capaz de exprimir a melancolia silenciosa que parece ser a caracterÃstica do japonês. A dor da separação é manifestada pelo boneco por meio de paráfrases incrivelmente abstratas de poucos gestos. Essa animação de um material inanimado nos toca tanto mais profundamente quando reparamos no rosto jovem da artista de uns vinte anos de idade que aparece imediatamente ao lado do rosto de madeira do boneco. Graça, elegância e fragilidade dos gestos fazem parte daqueles conceitos básicos que são comuns a todas as artes, sejam estas pintura ou karatê.à sua atual exposição fotográfica com imagens do Japão no museu etnológico de Hamburgo, Betty deu o nome de “Nowhereland”. Já em 1995 ela declarava em um manifesto as suas convicções com as palavras “Nowhereland is our commonland—. Se quisermos conhecer esse paÃs “Nenhum-lugar—, ele deverá ter certamente alguns traços do Japão. O Japão real e fÃsico parece tão absurdo para um europeu que os viajantes lhe atribuem sempre um traço fictÃcio. O ensaÃsta Chris Marker chama o seu livro de fotos do Japão “O paÃs estrangeiro— (Le dépays) aonde comenta: “Se alguém quiser conhecer o Japão, é melhor inventá-lo.— Roland Barthes declara no inÃcio de seu livro sobre o Japão, “O reino dos signos”, que também assimilou apenas um certo número de traços formando a partir deles um sistema: “chamarei a este sistema – Japão.— O retraimento desses viajantes europeus que renunciam a qualquer pretensão de poder reproduzir a realidade é digno de estima, pois contrasta com a audaz jactância de certos guias de viagem que afirmam poder trazer aos outros a essência de um paÃs ou de um povo.