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Sem Título

Visitação

27/01/2005 a 27/02/2005

Em toda a obra de José Guedes há uma constante manifestação de diálogo e confronto entre a cor e a imagem. Transitando por vários suportes, sua obra visa gerar novos significados estéticos, a partir da experimentação com a linguagem pictórica.

Em toda a obra de José Guedes há uma constante manifestação de diálogo e confronto entre a cor e a imagem. Transitando por vários suportes, sua obra visa gerar novos significados estéticos, a partir da experimentação com a linguagem pictórica. 
Entender a obra de José Guedes é mergulhar no universo dos caminhos que se bifurcam em um grande labirinto, formado por inúmeras facetas e veredas. Sua obra coloca em debate desde as questões que dizem respeito à linguagem pictórica até as que discutem a percepção estética e a subversão da lógica tradicional dos objetos. Seus trabalhos não têm hierarquia de escala ou consistência de materiais, podendo transitar entre a fotografia, pintura, videoinstalações, intervenções urbanas e objetos. 
Naturalmente, há vários caminhos para se entender a obra de José Guedes, mas um dos pontos essenciais de sua poética diz respeito à investigação da linguagem pictórica. 
Dedicando-se durante muitos anos à pintura, o que lhe valeu uma série de prêmios e exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, Guedes, em meados dos anos 1990, começou a inserir a fotografia em suas obras. Muitos dos trabalhos dessa época traziam a pintura e a fotografia em um mesmo plano, como é o caso de Mercados Populares (1997), em que a imagem fotográfica era colocada em diálogo direto com uma pintura monocromática de colorido vibrante. 
Ampliando o conceito da pintura para além de seu habitat “natural”, Guedes explora a cor, para dela extrair significados especiais. Ele investiga sua espacialidade, as relações que estabelecem entre si e, principalmente, as novas conotações e possibilidades estéticas que elas ganham em diferentes meios. 
Pinturas 
É dentro desta perspectiva que se constrói a exposição “Sem título” do artista José Guedes, apresentada entre os dias 26 de janeiro a 27 de fevereiro, no Paço das Artes. Apesar da exposição não configurar necessariamente a trajetória artística do artista, traz à tona seus trabalhos mais recentes, particularmente aqueles desenvolvidos entre 2001 e 2004. Constituída por 12 obras que se dividem entre objetos, poemas, poemas-objetos, fotografias, videoinstalações e videoprojeções, “Sem título“, apesar da diversidade de linguagens, desvela ao nosso olhar o pensamento pictórico do artista. 
Em Balões (2004), Guedes nos oferece seis balões de HQ coloridos em dimensões variadas. Se a referência ao pop, aqui, parece ser óbvia, a investigação sobre a cor é, na verdade, sua preocupação fundamental. Em Pintura (2004), a mesma ideia se repete. O trabalho, que consiste na aplicação de cores vibrantes sobre quatro monitores de TV 20″, não traz somente à discussão uma certa subversão em relação ao meio televisivo, como também coloca em diálogo a pintura com os monitores de TV, que deixam de ser meros receptáculos de imagens midiáticas para se tornarem abrigo de uma pesquisa cromática. O azul, com sua vibração contida, o verde, o vermelho e o amarelo, de um vibrante e quente colorido, por outro lado, ganham sonoridade, já que os monitores de TV estão com os canais sintonizados em tempo real. 
Nas pesquisas de Guedes, as linguagens parecem não existir separadamente. Ao contrário, pintura e fotografia, pintura e poesia, cor e imagem, cor e palavra são colocadas lado a lado, rompendo as fronteiras e as linhas bem definidas. Em suas obras, como nas fotografias Mar (2004) e Cidade/Nuvem (2004), ele não trata somente de registrar um assunto, mas de colocar em debate a contaminação entre diferentes linguagens. 
Mas o que há por traz destas investigações sobre a linguagem pictórica nos trabalhos de José Guedes? Seria somente a investigação dos limites do conceito da pintura? Ou um desejo de subversão das fronteiras que nos permitiria vislumbrar um sentido que escapa à nossa percepção habitual? 
Como nos diz o próprio artista, a investigação, pela pintura, de cores vibrantes já é, por si só, o centro de sua atitude subversiva. Suas cores são fortes e não de um tom “surdo”, e é exatamente este colorido vibrante que potencializa a ação desconstrutiva do artista. 
Subversões 
José Guedes é um artista da subversão. Em seus trabalhos, percebe-se sempre uma faísca de desejo de desconstruir aquilo que nos parece usual. Esta é, por exemplo, a tônica de muitos de suas obras, como Vinho (2005), Árvore-paisagem e Magritte que, à semelhança de uma atitude surrealista, criam situações que subvertem a lógica tradicional dos objetos. Este processo de re-significação, como diria Walter Benjamin ao descrever a poética surrealista, nasce de analogias por vezes inconcebíveis, provocando uma espécie de curto-circuito, uma iluminação profana. 
Também a Paris dos surrealistas, diz Benjamin, “é um pequeno mundo. Ou seja, no grande, no cosmos, as coisas têm o mesmo aspecto. Também ali existem encruzilhadas, nas quais sinais fantasmagóricos cintilam através do tráfico; também ali se inscrevem na ordem de inconcebíveis 
analogias e acontecimentos entrecruzados”. 
Na exposição “Sem título” somos convidados a nos deparar com estas analogias inconcebíveis em vários momentos. Em Ulisses (2004), ficamos diante de um livro que não se pode mexer; em Sem Título (2004), de dois livros lacrados sobre a base; e até mesmo em Relógio (2004), de um relógio de parede com os marcadores de tempo dispostos em lugares não habituais. 
Por outro lado, particularmente em Ulisses e em Sem Título, Guedes, à semelhança dos livros-poema de Ferreira Gullar, convida-nos a refletir sobre a relação de participação com o objeto de arte, colocando em debate a mera percepção retiniana. 
É importante notar, como nos assinala o próprio artista, a contribuição que o movimento MADI – fundado em Buenos Aires, em 1946, por Carmelo Arden Quin – deu ao seu processo criativo. Nos anos 1940, o movimento já não desenvolvia somente objetos manipuláveis, como também orientava suas investigações na experimentação com a cor, além de ter criado, em reação ao rigor geométrico dos construtivistas, recortes na pintura. Em Poemas (2004), por exemplo, esta influência parece ser evidente. O trabalho, que é resultado de imagens obtidas a partir da sobreposição de palavras de poemas diversos, investiga a desconstrução da linguagem poética, transformando a poesia em puro grafismo e recurso pictórico. Por outro lado, Poemas oferece ao espectador a possibilidade de criar seus próprios poemas, já que lhe é dado, por meio da legenda, o processo e as fontes utilizadas no desenvolvimento do trabalho. 
Temporalidades 
Heráclito, considerado por muitos como o “obscuro” e o “Fazedor de enigmas”, parece ter sido um dos primeiros pensadores a investigar a ideia do tempo, da mudança e da não perenidade da vida. A imagem do rio, que guarda sua identidade no e pelo movimento contínuo de suas águas, serviu-lhe de metáfora para expressar o sentido da passagem do tempo na antiguidade. 
Na contemporaneidade, a ideia do tempo, tanto no campo das artes quanto no das ciências, vem ganhando atenção especial. A abolição da ideia do tempo único, a partir das propostas de espaço-tempo trazidas pela teoria da relatividade, pode corresponder, na literatura modernista, à decadência dos enredos lineares e das narrativas únicas. Há, de certa forma, um certo parentesco entre as relações espaciais e as visões de espaço-tempo, introduzi das pela relatividade, e a ruptura com a perspectiva única e central, colocada pela estética cubista ou mesmo pela música atonal, inaugurada em princípios do século passado com o Opus 11, do compositor austríaco Amold Schoenberg. 
Edmond Couchot, ao discutir a perspectiva do tempo na contemporaneidade, fala de um tempo em aberto, sem orientação particular, sem fim nem começo, “tempo que se auto-engendra, se 
reinicializa ao sabor do observador, segundo as leis imaginadas pelo autor. Trata-se de um tempo ucrônico (…) o tempo ucrônico não substitui nem ‘o que foi’ se referindo-ao passado, nem ‘o que é’ reenviado a um presente perpetual, mas a um ‘isso pode ser’, aberto a inúmeras eventualidades (…)”. 
Guedes, contudo, não parece estar interessado em ilustrar o pensamento de Couchot ou de Einstein, mas, sim, em colocar em debate a nossa impotência diante da passagem do tempo. Tal ideia se evidencia em uma série de trabalhos que compõem a exposição, como em Relógio (2004) e em Tempo (2001), uma videoprojeção com 48 imagens em loop que metaforiza a ideia da passagem do tempo, do processo e do efêmero – uma das questões basilares da poética contemporânea. Já em Rio (2003), videoprojeção com uma única imagem em loop, Guedes investiga a ideia do mesmo, daquele que se repete e não muda. Embora Rio ilustre bem uma espécie de negação da passagem do tempo, o trabalho só se manifesta, dialeticamente, temporalmente.
E é dentro destas perspectivas, destas alamedas que se bifurcam, destas analogias e iluminações profanas, destes diálogos e embates entre linguagens diversas, que se constrói a exposição “Sem Título“, do artista José Guedes. Cada obra é a arena na qual a pintura e a fotografia, a cor e a imagem, a poesia e a pintura, a cor e os objetos, estabelecem uma interlocução cerrada, ficando-nos sempre a sensação de um jogo entre aquilo que vemos e aquilo que nos escapa.
* José Guedes foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2005
Governo do Estado de SP