Visitação
10/11/2001 a 16/12/2001
Palavra-figura é um diálogo entre o sistema verbal e o visual, Buscas mostrar as diversas figurativizações que o texto verbal pode fazer existir na sua condição plástica. A construção sincrética das duas linguagens fundem-se através de uma trama intratextual.
Palavra-Figura é um diálogo visual entre o sistema verbal e o visual. Busca mostrar as diversas figurativizações que o texto verbal pode fazer existir na sua construção plástica. A construção sincrética das duas linguagens funde-se, através de uma trama intratextual, onde o discurso remete a seu próprio dizer e, intertextual na qual os discursos sempre rearticulam um mundo referencial já tornado significante por um outro sistema. André Malraux já afirmava que uma obra de arte não é criada a partir da visão do artista, mas a partir de outras obras de arte. Contudo o texto é poético porque construtor de novas maneiras de fazer ver o mundo, devido a correlações inéditas entre expressão e conteúdo. Para Valéry (1) o que difere o texto prático do poético é que no primeiro o significante se desfaz após a mensagem (como nos anúncios e outdoors) e no segundo ele adquire uma importância de retorno que cada nova instância é capaz de ressignificar.
No contexto da exposição, cada obra é uma realidade independente e auto-suficiente; porém, é na situação de interação de umas com as outras que podemos confrontar seus procedimentos enunciativos e verificarmos quais os pontos de vista que condicionam o singular efeito de sentido construído por cada obra e que lhe confere sua identidade.
No conjunto das obras estão presentes a fotografia, a instalação, o desenho e o objeto. Cada um desses sistemas de produção possui suas próprias qualidades e códigos de referencialização para tornar visível a imagem da relação entre o verbal e o visual e, são esses diferentes papéis que a Arte assume que constitui aquilo que caracteriza sua natureza reflexiva – a capacidade de se auto pensar e se redefinir.
(1) P. Valéry. Poesia e Pensamento Abstrato. In: Variedades, 1999.
Da série Comandos, o trabalho Mantenha Distância apresenta um estado de ser autoritário, impessoal, imparcial e objetivo. Esse efeito de sentido é construído na percepção de um texto que se mostra rápido, cortante, duro, seco e frio, qualidades da expressão que afetam sensivelmente quem se confronta com tal barreira. A forma horizontal e longa tem a competência de impedir o avanço. Intimida.
Encontramos frequentemente no nosso cotidiano esse tipo de mensagem e, como nos conformamos a regras sociais e culturais, assim como a avisos que nos resguardam de perigos, acabamos por desviar (inclusive a atenção) sem questionar. Nesta situação cumpre uma função prática, de uso. Mas, para que serve um comando quando ele perde o sentido?Pendurado na parede, num contexto alheio a que se destina e, duplicado, o objeto produz um efeito estranho, uma incoerência. O estranhamento é um agente provocador de fazer ter atenção, observar com maior cuidado. As linhas brancas e pretas, nos polos opostos da não-cor, colocadas em diagonal convergem no centro e apontam para o intervalo das palavras acima. É o lugar da fenda, esta área neutra -– cinza – que nos permite penetrar no trabalho e transgredir a ordem desconstruindo, velando, e criando novas configurações. As letras transformam-se em grafias-grafites, desenho, tom, som, notas.
E o duplo? Com o objeto multiplicado Furlong articula um jogo lúdico ao mesmo tempo que assegura o prazer e a segurança de se poder transitar entre a alteração e a manutenção da ordem.
Escrito no barro ou na areia da praia, quem não brincou de gravar seu nome, seus sonhos, seus amores, em materiais que os elementos da Natureza borram, lavam ou apagam? Experiências efêmeras, sabores passageiros, mas que os estados d’alma, desde o início dos tempos, deleitam-se em reviver. Na parede de argila, Spaniol imprime seu texto. Todas as palavras referem-se a ordem dos alimentos. O artista classifica-as na busca de normatizar suas propriedades: especiarias, carnes, frutas. Artigos hoje tão globalizados comercialmente que perdemos a noção de suas origens, mas que no conjunto e por características e singularidades vão identificando um lugar e um tempo: eram os alimentos disponíveis e usados na época e na região em que Cristo vivia.
Recuperados nos palimpsestos da memória (pela pesquisa), o artista na vontade de preservá-los busca, no modo de produção, mostrar através das propriedades estruturantes imanentes à obra, um efeito cujo sentido seja o de eternidade. Ferindo o barro subtrai palavras-figuras e congela-as; assim, ao invés de materiais friáveis ele funde, queima, transforma em um outro mais perene, seja a cerâmica, a parafina, o concreto, o mármore, o ferro ou o inox. No chão, o lugar do novo estatuto – ser.
O título, normalmente um referente externo e de ordem verbal, é neste caso um conector importante, um link, pois seu significado ao nomear o presente recupera um valor do passado. Daí a alusão à reminiscência, à memória, à homenagem. Em In Memorium I, Barth repropõe o regime de visibilidade, o fragmento que restabelece a ligação de interação com o todo – Textos de percurso, 1996 – é como um zoom, um procedimento de focalização que consiste em inscrever, um acontecimento, em coordenadas espaço-temporais cada vez mais precisas. Essa pontuação dá um acesso mais detalhado, próximo e íntimo da obra.
No deslocamento, a materialidade do objeto escada suporte do texto-poesia instalado a céu aberto é transubstancializada em luz, imaterial e etérea. No entanto, os carimbos, documentos de processo constitutivo da ambas as obras, que no antes eram somente sujeitos de um fazer implícito adquirem, agora, existência in praesentia mantendo vivo o elo dialógico. Backlight e carimbos são as marcas, conceitual e concreta, que remetem o enunciado à enunciação.
A linguagem é o ocultamento dos objetos do mundo natural num outro código de apresentação. Partindo de fotos de propagandas e outdoors presentes na paisagem da cidade, Lauer trabalha com o procedimento da inversão do regime de visibilidade que rege estes anúncios. À obviedade rápida, imediatista e caótica, da visão do trânsito urbano, oferece-nos uma obra onde a informação é transformada, camuflada. Transpõe para uma parede as imagens fotografadas, elimina a paisagem e torna o texto quase imperceptível. O apagamento é contraposto pelo registro de reflexos luminosos que captam nosso olhar e, lentamente, percebemos que os pequenos brilhos são palavras. Essa surpresa é uma ruptura com o condicionamento a que estamos habituados, o da instantaneidade do reconhecimento e, produz uma viva atração, uma estesia – o sentido é sentido. Leituras Urbanas coloca em questão o jogo de poder entre o visual e o verbal. Inseridos num mundo onde a visualidade imagética é cada vez mais crescente e dominante, percebemos que, no contexto da urbe, o texto verbal continua mantendo forte presença, embora desvalorizado. Problemática que faz o artista optar por procedimentos enunciativos, como o que Lauer nos apresenta, que buscam ressignificar a relação visual-verbal.
Retomando um pensamento do início dos anos 90, o artista volta a trabalhar com o alfabeto dos surdos-mudos, desta vez em fotografia. As esculturas de bronze são fundidas a partir de palavras nascidas da combinação aleatória das suas próprias letras. Importava o resultado plástico, a forma no espaço. O novo trabalho é formado pela junção de letras fotografadas. O artista pede a pessoas desconhecidas construírem uma palavra de sua preferência com os signos dos surdos-mudos e clica a confecção gestual de cada letra. O fato de o suporte ser bidimensional não altera ver e ler estas obras como esculturas, uma vez que o que se produz continua sendo uma forma no espaço. Forma essa que dança e muda ao sabor da situação da comunicação e da interação. As letras parecem diferentes devido a gestualidades particulares. A gestualidade, um sistema construtor e produtor de sentido, dá-se a ver nos movimentos produzidos por um corpo que sente e reage em função de sentimentos e emoções da alma. A leitura dos gestos mostra como uns são incisivos, determinados, extrovertidos, e que com autoconfiança projetam-se com segurança no espaço e outros são mais tímidos e retraídos. O contexto, onde as fotos são tiradas, não é uma preocupação primordial do artista, assim no eixo paradigmático toda letra é válida, mas na escolha do sintagma-obra, uma letra pode construir mais adequadamente a significação que o artista quer fazer ver – harmonia e comunicabilidade em
Todas as línguas.
Os armários de José Rufino, desmembramentos de sua instalação Murmuratio, são antigos quadros de avisos, comuns em grupos escolares ou outras instituições públicas. Na função original esses objetos estavam sempre fechados, pois guardavam a “vida” de cada indivíduo (notas mensais, finais, informes) ou de entidades (normas, diretrizes), artigos da ordem do que deveria ser conhecido e publicado. Tinham o poder de instaurar um sentimento de reserva. Os usuários aproximavam-se desses objetos de valor com respeito, curiosidade ou temor, uma vez que a junção com o conteúdo, a informação, podia ser eufórica ou disfórica. Rufino altera essa ordem disponibilizando e oferecendo ao olhar papéis cujos textos são para não serem vistos ou lidos, de circulação restrita ou privada. Contas, históricos, extratos bancários, documentos institucionais, arquivos secretos cuja característica comum é terem o mesmo tipo de escritura serial. Se a primeira finalidade do armário era guardar papéis singulares, agora o artista constrói seus arquivos com “múltiplos”.
Multiplicados, rompem as fronteiras do restrito e do que está confinado por paredes e portas e ganha o espaço, expandindo-se, derramando-se e espalhando-se pelo chão.
A quebra do privado já era um procedimento presente nos trabalhos feitos sobre cartas da sua própria família. Os desenhos possuíam figuras que sugeriam ter afinidade com os conteúdos das narrativas. Na fase seguinte passa da figuração à abstração com as manchas de Rorschach, também presentes no trabalho desta exposição. As formas das manchas são simétricas e mantêm um diálogo com a qualidade de similaridade da escrita. O visual e o verbal se equilibram, o texto verbal perde a função de suporte para ser figura constituinte e o jogo figura/fundo perde a validade. Curioso o observador quer saber o que o texto diz e o desenho torna-se o que o artista chama ironicamente de meros “mofos incômodos”.
Que ser habita esta figura? Aquele que busca mostrar a si próprio, sua alma, sua essência? Qual a problemática implicada à construção de um “eu” ou de um simulacro, o outro? O que se desenha aqui, traços fisionômicos, uma expressão facial, um olhar? Quem é afinal esse Gustavo? Um retrato, um objeto feito e olhado, um sujeito objetivado, construído.
Como ele nos é oferecido? Em forma de linguagem visual. O que nosso olhar sensível apreende são manchas, diferentes adensamentos de claro/escuro que dão corpo a esse corpo. Porém, a estruturação plástica é resultado de outro ato de linguagem, desta vez mediatizada pelo sistema verbal. O que dá forma e existência a esse corpo e provoca sua materialidade, volume, luz e sombra, é o acúmulo ou o despojamento de palavras. Tatuadas na pele do papel com carimbos, estão nome e endereço, a identidade do artista e sua localização no mundo. Um eu, aqui, agora.
Que ser habita esta figura? Um sujeito em conjunção consigo mesmo.