Monroy’s performance service No.1 – Senhor Kosuth, o que você faria?

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21/08/2012 a 13/09/2012

Monroy—™s performance service No.1 —“ Senhor Kosuth, o que você faria? é o trabalho do artista Carlos Monroy selecionado para participar da 4ª Temporada de Projetos 2012; veja

São Paulo, 5 de Julho de 2012 

Caro Sr. Kosuth, 

Espero que esta carta o encontre bem. Sei que sua agenda é deveras atarefada e que provavelmente não gostará de ser incomodado com comentários que não digam respeito diretamente à sua própria contribuição intelectual e conceitual para o campo da arte, por isso peço desculpas e licença para escrever-lhe por conta do trabalho de um jovem artista colombiano de passagem pelo Brasil, pois pareceu-me indispensável. Fui convidado a criticar uma de suas performances, chamada Monroy’s Performance Service No.1: Sr. Kosuth, o que você faria?, e parece-me que a melhor maneira de questionar sua exposição e lançar perguntas para o futuro será completar sua promessa e perguntar-lhe: O que você faria do desafio de definir o que é a perfomance e o que é um artista que vive do e pelo trabalho com ela?

Imagino que, apesar de ter que ouvir até hoje comentários irônicos sobre como os conceitualismos da América do Norte da década de 1960 foram uma leitura rasa da linguística, uma aplicação de “Wittgenstein nível 1” ou uma “semiótica para iniciantes”, sua resposta provavelmente começaria com o aviso de que pensar o que possa ser a performance não deve partir da atenção sobre sua aparência superficial, mas sobre como ela funciona e de que forma suas definições se atualizam em contextos variados. Imagino isso porque você, desde seu célebre ensaio Arte depois da filosofia, de 1969, enfatiza a frase de Wittgenstein “o significado é o uso”. Foi assim mesmo que começou o trabalho de Carlos Monroy, que, inspirado por sua instalação One and three chairs’, de 1965, elaborou uma cena em que há espaço para o confronto entre uma definição de performance, uma cadeira a ser ocupada pelo artista e uma fotografia sua sentado nesta mesma cadeira. Assim como na sua instalação de 1965, Monroy convida o público a encarar os vários níveis de presença em relação a um objeto como níveis que se determinam mutuamente: ideia da coisa, a coisa em si e a representação da coisa. O visitante poderá ver esses três elementos articulados, sendo simultaneamente uma e três apresentações da cadeira, digo, da performance.

No entanto, a performance de Carlos Monroy lida com uma ideia siginificativamente mais disputada do que a de cadeira, que ainda conta com certo consenso. As definições de performance selecionadas pelo artista encontram-se em polos tão distantes que tornam a escolha pela definição do dicionário algo arbitrário e insuficiente para estabelecer sua pauta. A digressão do material pesquisado por Monroy na busca de uma definição textual levou-o a criar um dispositivo de recombinação entre cada um dos elementos de sua instalação. O público pode escolher uma entre quinze opções de definições de performance, uma entre quinze opções de ações simples para o artista e uma entre quinze fotografias de ações do artista em diversos contextos. Conforme as escolhas do público, portanto, a instalação transforma-se completamente, podendo recombinar-se de até 3375 formas diferentes, todas com a presença do artista que cumpre a ação escolhida ao lado de uma fotografia e de uma definição que podem ser convergentes ou dissonantes de acordo com o humor do público.

Como você se sente, Sr. Kosuth, diante desse panorama? Seria esse um trabalho de “Wittgenstein nível 2”? Ou será que se trata de uma digressão que infiltra confusão na máquina conceitual simples e precisa que você elaborou há mais de quatro décadas? Uma cadeira é tão diferente de uma performance que torna-se fundamental um dispositivo mais complexo? Ou a recombinação é desnecessária, já que o que importa para os conceitos é a relação entre ideias e contextos e não o ‘assunto’ de cada palavra e sentença? A iniciativa de Monroy parece-me afim às suas pesquisas de desvincular a ideia de performance de qualquer definição estanque, através de uma demonstração por absurdo, ao mesmo tempo em libera sua definição de quaisquer traços formais e estéticos pré-definidos. Afinal, é sempre bom lembrar que nem todas as perfomances acontecem sob luz baixa, com o performer vestido com roupas de baixo brancas em silêncio ritualístico. A noção da performance situa-se em um contexto limítrofe entre os lugares da arte e aqueles da vida e, portanto, congelar uma definição do que seja performance a partir de seus trejeitos e recursos acumulados seria recusar a ela esse lugar. Mas e você, Sr. Kosuth, o que você faria? 

Minha melhor estima,

Paulo Miyada 

 –

 

São Paulo, 6 de Julho de 2012 

Caro Sr. Kosuth,

Foi deveras gratificante escrever-lhe ontem sobre o trabalho de Carlos Monroy, já que conversamos tão pouco quando esteve em São Paulo. No entanto, algo não me desceu bem e passei toda a noite em claro após escrever-lhe. Falar com alguém que aos vinte anos já havia garantido seu lugar na história da arte não é pouca coisa e acredito que censurei uma parte importante do assunto. Pois o trabalho de Monroy não fala apenas da multiplicidade de conceitos imbricados na ideia de performance, ele também fala da frustração envolvida em viver junto desse, ou de qualquer conceito – e me parece que o senhor pode ser uma boa interlocução para falar em frustração…

O próprio público convive com certa frustração quando está diante da montagem final do trabalho de Monroy, tentando resolver um conceito que não se estabiliza, lidar com um problema que não tem resposta —œcerta—. Mas isso é o de menos, a frustração germinou no trabalho de Monroy há muito tempo, quando a realização dest levou-o a lidar não apenas com um conceito indeterminável, mas com uma prática quixotesca: a vida através da performance. Isso porque a montagem que acontece agora, em 2012, no Paço das Artes, é um capítulo de chegada de uma saga que já dura alguns anos, desde quando o projeto do trabalho Monroy’s Performance Service No.1: Sr. Kosuth, o que você faria? foi esboçado em 2009. Nessa ocasião, o artista enviou o projeto para o programa de perfomances VERBO, em São Paulo. Apesar de selecionado, Monroy não contava com apoios para financiar sua viagem de Bogotá e, menos ainda, para produzir as pranchas que constituem a instalação, o que resultou numa longa negociação com a produção do evento que acabou com seu nome presente na programação enquanto o artista estava completamente ausente, em sua casa na Colômbia.

Desde então, a forma como esse trabalho existe é através de uma imagem sintética no portfólio do artista e como algumas instâncias de discussão do trabalho e de sua impossibilidade primeira. Um evento colombiano de performances no Museu de Arte Moderno de Bogotá (MAMBO),  em 2009, convidou-o a fazer uma palestra para os alunos, na qual ele contava sua proposição e frustração e então lia quinze definições de performance, seguidas de uma canção pop dos anos 1980 chamada, como não podia deixar de ser, Performance. Mais tarde, em 2010, Monroy conheceu Jorge Miñano, artista, curador e escritor espanhol, responsável pela edição de um fanzine chamado Panel Magazine. Milaño interessou-se pela história de Monroy e realizou uma entrevista por Skype, na qual era filmada uma cadeira “ausente”, enquanto o artista respondia perguntas fora de quadro, ao mesmo tempo em que fazia ações banais como escovar os dentes e urinar, atos banais que sobrepunham ruído ao som da gravação. Em seguida, Milaño transcreveu um trecho da entrevista e editou uma edição de Panel, que distribuiu na edição de 2010 da VERBO, fazendo com que a própria ausência da performance no ano anterior se tornasse de alguma forma presente enquanto incômodo e digressão inusitada do artista.

Mais ainda, o assunto voltará a aparecer numa performance programada pelo artista para anteceder sua instalação no Paço das Artes, em que ele voltará a falar com estudantes e artistas colombianos sobre como sobreviver trabalhando com performances, tendo como referência o mesmo projeto, agora também contido pelas ações sobrepostas de escovar os dentes, encher uma bexiga etc. Pois bem, contar essa história poderia ser um assunto secundário, uma nota de rodapé ou curiosidade numa entrevista com o artista, mas de alguma forma acredito que isso possa sensibilizá-lo, Sr. Kosuth.

Afinal, o Sr. deve entender muito de frustração e de tarefas quixotescas. Há tanto tempo vem falando —” em ensaios, entrevistas e no seu próprio trabalho —” sobre como todo acabamento formal de uma obra, toda busca estetizante, não passa de uma tentativa de atender a um —œbom gosto— burguês, de uma entrega ao papel ornamental da arte que na verdade é completamente alheio a ela… e, ainda assim, basta olharmos ao redor para sabermos que essa entrega não acabou, mas incorporou inclusive trabalhos que citam diretamente o legado da arte conceitual, não é mesmo? Lembro que quando esteve em São Paulo por ocasião da Bienal esse era um assunto que ainda o irritava, quarenta e sete anos depois de escrever sobre o assunto. Fico me perguntando se hoje esse tornou-se um papel que você decidiu manter para si, enquanto o mundo continuava rodando. Veja, não quero ser de forma alguma impertinente, mas faço essas perguntas porque parece que elas tornaram-se importantes para o trabalho de Monroy. Seus planos para a instalação no Paço das Artes não irão obliterar a história de sua frustração —” já que finalmente ele recebeu espaço, apoio e subsídio para realizar seu projeto —”, mas deixaram bem clara a trajetória do trabalho, através de um display de documentos e registros da história que resumi acima. Olho para o seu exemplo e me pergunto se essa frustração será, digamos, exorcizada pela apresentação sintética de Monroy’s Performance Service No.1: Sr. Kosuth, o que você faria?, ou se também poderemos reencontrá-lo, daqui a quarenta e cinco anos, refletindo sobre como tornar possível o trabalho como artista de performance. O que você faria, senhor Kosuth? 

Atenciosamente,

Paulo Miyada

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São Paulo, 10 de Agosto de 2012 

Caro Sr. Kosuth,

Já faz algum tempo desde que lhe escrevi pela última vez e, como não obtive respostas, acreditei que essa —œtroca— de missivas teria fim antes de efetivamente começar. Mas outro dia Carlos Monroy me mostrou um cartazete que desenhou e que pretende incluir entre os documentos de sua exposição no Paço das Artes. Ali está escrito: “All art (after Duchamp Kosuth) is a conceptual strategy (in nature) because art only exist conceptually in a world of references about what art should be”. [Toda a arte (depois de Duchamp Kosuth) é uma estratégia conceitual (por natureza) porque a arte só existe conceitualmente em um mundo de referências sobre o que a arte deveria ser]. É claro que você reconhece essa paráfrase de seu famoso aforismo “All art (after Duchamp) is conceptual (in nature) because art only exists conceptually.” [Toda a arte (depois de Duchamp) é conceitual (por natureza) porque a arte só existe conceitualmente].

O embaralhamento promovido por Monroy é notável. Primeiro por seu bom humor, depois por sua reparação histórica: é claro que Duchamp é uma referência seminal para toda a sua geração, mas ele mesmo sabia que suas experiências não mudaram de fato o que significava a arte ao serem elaboradas em torno da década de 1910. Foi preciso passarem outras cinco décadas para que a sua geração retomasse algumas ideias-chave de Duchamp e as consolidassem como parâmetros incontornáveis da crítica e da produção de arte. Nesse processo, a arte se liberou a largos passos dos parâmetros do gosto, da defesa inquestionável da ‘boa forma’ e da agenda comum da busca pelo belo, mas entrou em um território repleto de referências sobre o que é que torna a arte arte, depois que ela não precisava mais apresentar-se com nenhuma aparência pré-estabelecida.

Trata-se de um horizonte de infinitas possibilidades, esse que sua geração nos legou, é verdade. Mas trata-se também de um horizonte suscetível a todo tipo de contradição e entropia. Pessoalmente, acredito que é necessário manter-se vigilante para não recair em saudosismo pela perda do porto seguro dos estilos; seria uma fraqueza que ficaria a um passo de recair em formalismos e, pior ainda, em ressuscitar o império do bom gosto. No fim, talvez você e seus colegas sejam mesmo culpados pela avalanche de dúvidas e confusão que motivaram a performance Monroy’s Performance Service N0.1: Sr. Kosuth, o que você faria? Mas ainda assim agradeço porque essa confusão talvez seja o único antídoto para evitar que a performance mergulhe nas profundezas de um campo cheio de regras formais e completamente tomado de traquejos e traços estilísticos pré-fabricados. Por isso, Sr. Kosuth, lhe agradeço.

Sem mais para o momento,

Paulo Miyada

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Foi deveras gratificante escrever-lhe ontem sobre o trabalho de Carlos Monroy, já que conversamos tão pouco quando esteve em São Paulo. No entanto, algo não me desceu bem e passei toda a noite em claro após escrever-lhe. Falar com alguém que aos vinte anos já havia garantido seu lugar que, no campo da arte, estabiliza e engloba uma ampla gama de práticas que, grosseiramente, podem ser sumarizadas como gestos artísticos baseados na presença sincrônica do público e do artista ou de algum avatar seu, como atores, dançarinos e objetos. Assim, em torno dos recursos bastante maleáveis de audiência e desempenho, atividades completamente díspares podem permanecer reunidas sob uma alcunha comum, como se em contiguidade.

Afinal, como seria viver em um dos hemisférios do planeta narrado por Jorge Luis Borges, onde existem apenas verbos ou adjetivos?

 

Governo do Estado de SP