Mise-en-scène

Visitação

03/03/2009 a 05/04/2009

Regina Parra expõe uma série de 12 pinturas em óleo sobre papel. Produzidas a partir de frames captados por câmeras de segurança de circuito fechado, as pinturas mostram sempre a mesma personagem, a artista em situações cotidianas.

Uma das maneiras de lidar com a tensão latente que é parte indissociável da obra de Regina Parra reside no debate histórico entre o —œnatural— e o —œposado— no gênero do retrato —“ dilema que remonta ao século 18 (Chardin), atravessa a fotografia moderna no início do século 20 (desde Walker Evans) e chega até a produção contemporânea, seja a pintura figurativa (Gerhard Richter e sua série Baader-Meinhof, Lucian Freud, Luc Tuymans etc. etc.) ou o vídeo (os rostos em still de Julian Opie ou o Zidane de Philippe Parreno/Douglas Gordon).

Como observou o historiador norte-americano Michael Fried (1), o retrato, mais que qualquer outro gênero, se baseia na apresentação de algo ao olhar do outro (no caso, o público). Ou seja, sua ação básica se resumindo à auto-apresentação do retratado à observação de alguém —“ no limite, o que se representa é o próprio —œestado de observância—. Deste modo, o retrato seria extremamente mal aparelhado para lidar com a necessidade de negar ou neutralizar a presença do observador, uma opção, por excelência, moderna (se até o século 18 o retrato era considerado uma opção menor, isso se devia especialmente a seu grau de —œteatricalidade—). Uma estratégia que artistas (como Chardin e Jean-Baptiste van Loo) adotaram para vencer esta limitação foi pintar as pessoas como se absorvidas pelo pensamento ou ocupadas por alguma atividade qualquer (daí a quantidade de retratos em que os personagens lêem cartas, desempenham alguma tarefa doméstica ou simplesmente olham pela janela). Fried lembra ainda que a —œnaturalidade— sempre foi uma espécie de ideal fotográfico, baseada na crença de que uma pessoa que é registrada sem perceber revelaria algo de mais verdadeiro em relação a si mesma (os registros não-autorizados, estilo paparazzi, feitos por Walker Evans na década de 1930 foram recebidos como as imagens o mais realista possível da América e do norte-americano). Ao passo que alguém consciente da presença da câmera iria necessariamente —œteatralizar— sua auto-apresentação. 
Na série Mise-en-scène de Regina Parra vemos a mesma personagem, uma jovem de cabelos loiros e compridos, envolvida em situações cotidianas: sacando dinheiro no caixa eletrônico, saindo do carro no estacionamento, ou esperando para atravessar a rua. Não sabemos se age de maneira —œnatural— (naturalizada), desempenhando mecanicamente suas ações, ou premeditada, como se cumprisse um roteiro pré-determinado.Trata-se da imagem da própria artista capturada por câmeras de segurança de circuito fechado. Ela dirige toda a cena: estuda o set, posiciona-se e coordena a execução do registro por outra pessoa, fotógrafo amador. Deste modo, usando uma câmera digital comum ela extrai, diretamente do monitor, um still. É justamente este momento de tempo/tensão concentrada (espécie de freeze-frame cinematográfico) que tem o poder de promover uma fissura no embate proposto por Michael Fried como —œnatural versus staged— —“ além de comentar uma certa crise na noção de gênero, tanto na arte contemporânea como no cinema e na fotografia. Ao assumir papéis simultâneos, de alguém que tem o poder de colocar em cena (metteur-en-scène) e de quem é meramente dirigido, Regina promove um contundente deslocamento na posição e condição do observador: do lugar de espectador passivo para um campo de ambiguidades e paradoxos —“ como nas narrativas de suspense hollywoodianas, quando duvidamos da integridade do personagem e ficamos totalmente à deriva. E talvez venha daí todo desconforto e instabilidade que estas imagens suscitam. (1) FRIED, Michael, Absorption and Theatricality: Painting and Beholder in the Age of Diderot, Chicago Press, 1980.
Colocar em cena : Uma conversa com Regina Parra (parte 1), por Fernando Oliva 
Fernando Oliva: Vamos começar falando sobre o início da sua carreira. Porque caminhos vc chegou ao curso de artes plásticas?
Regina Parra: Antes de fazer artes plásticas, eu fiz artes cênicas na ECA e trabalhei como atriz e assistente de direção no CPT (Centro de Pesquisa Teatral coordenado pelo Antunes Filho). Fiquei no CPT três anos, um período muito importante para mim porque o Antunes sempre privilegiou uma formação ampla dos atores. Então, apesar de trabalhar com teatro, discutíamos filosofia, cinema, dança e artes plásticas também.
Logo depois que sai do CPT, fui morar no Rio de Janeiro. Fiquei um ano por lá, trabalhando como garçonete e fazendo cursos no Parque Lage. Tive aulas de pintura e também de teoria com profissionais como Wilson Coutinho e Paulo Sergio Duarte. Apesar de já ter tido contato com pintura quando criança —“ fiz meu primeiro curso aos 11 anos —“ foi só no Parque Lage que eu comecei a pensar na possibilidade de levar isso adiante. 
Foi aí que eu fui para Paris para fazer um curso de pintura na École des Beaux Arts. Fiquei lá três meses e quando voltei, resolvi voltar para a faculdade —“ dessa vez para cursar artes plásticas. 
 
Fernando Oliva: Por favor fale sobre o curso de artes plásticas da Faap. O que foi mais importante ali, para seu projeto como artista?
Regina Parra: Acho que o mais importante foi o contato com os professores, a possibilidade de interlocução, de pensar e discutir questões relacionadas ao próprio trabalho. Isso é muito bacana no ambiente acadêmico, esse interesse na discussão, no embate, na troca. Além disso, tem o contato com os outros alunos e os trabalhos dos outros alunos que também te estimulam o tempo todo. 
Tive muitos professores marcantes na Faap. O Edu Brandão foi fundamental. Conheci poucas pessoas que defendem a arte como ele. Discutia os trabalhos de uma forma bem crítica, questionando mesmo, chamando junto. Era alguma coisa como —˜se é isso que você quer fazer, então vai ter que levar isso tudo muito a sério—™. Era meio um vai ou racha. E isso me fez muito bem. Além do Edu, o Paulo Pasta e o Zé Spaniol também foram importantíssimos, especialmente para discutir questões práticas de pintura. A Regina Johas e o Marcos Moraes também foram ótimos interlocutores e ajudaram muito no desenvolvimento e aprofundamento do meu trabalho. 
Fernando Oliva: Que situações/escolhas você considera decisivas em seus anos de formação?
Regina Parra: Acho que ter uma certa obsessão e disciplina para fazer as coisas foi bem importante nesse período. Na faculdade você se depara com mil possibilidades, mil caminhos diferentes. E às vezes isso paralisa. Sabe aquela situação em que você pode fazer tanta coisa que não sabe nem por onde começar? Eu sempre tentei experimentar de tudo na faculdade, de cerâmica a litogravura. E sempre tentei levar isso muito a sério, mais do que um como trabalho de faculdade, era um jeito de me experimentar e descobrir um pouco mais sobre meus próprios interesses.
Só comecei a pintar no segundo ano da faculdade, em 2005. No ano anterior tinha visto os trabalhos do Tuymans na Bienal e aquilo foi importantíssimo pra mim. 
Fernando Oliva: Gostaria que você falasse sobre a sua experiência no teatro. O que ficou deste processo, como “legado” pessoal e profissional? Em que medida você ainda sente as influências daquele período?
Regina Parra: Trabalhei com o Antunes Filho por três anos. Foi um período muito intenso porque o CPT funciona como uma espécie de rito de passagem, você meio que abdica de tudo e passa a viver só em função daquilo por um tempo. É pesado porque o Antunes é um cara super exigente e sempre trabalha no seu limite. Ao mesmo tempo, é muito bom porque é uma possibilidade de mergulhar de cabeça numa pesquisa que não fica limitada só ao teatro. Na verdade, o teatro, o espetáculo, é um pretexto para tratar de outras questões. Então foi uma oportunidade muito boa para tentar entender quais questões são importantes para mim e 
porque. 
Eu ainda carrego muita coisa do CPT e cada vez que eu paro para pensar vejo que ainda tem mais do que imaginava. Um dos pontos centrais da nossa pesquisa era tentar trabalhar com um naturalismo —˜fingido—™, distanciado. Não apenas chegar em cena e ser espontâneo, o legal é construir a espontaneidade. É parecer espontâneo, quando na verdade tudo foi estudado antes. É o naturalismo —“ ou a falsa espontaneidade —“ usado para chegar numa determinada intenção. Assim, nada podia ser gratuito. Todos os gestos, elementos de cena, entonações eram simbólicos. 
Outra opção ao —˜naturalismo construído—™ era trabalhar com um naturalismo ligeiramente distorcido; para que com essa pequena distorção o espectador pudesse ser levado para um outro lugar. 
Acho que essas questões podem ser vistas de certa forma nas minhas pinturas, a estranheza, a atmosfera cotidiana e aparentemente inofensiva. 
Fernando Oliva: A experiência do medo fez parte, de algum modo, daqueles anos? Seria possível estabelecer alguma relação desta sensação com alguns de seus trabalhos recentes?
Regina Parra: No período que fiquei no CPT, acompanhei todo o processo de montagem da tragédia grega Medéia. Foram 18 meses de pesquisas e ensaios, e mais 18 de espetáculo. Acho que a ideia da tragédia ainda está bem presente nos meus trabalhos.
Na série Controle, por exemplo, a tensão produzida pelas imagens é uma tensão muito semelhante a que temos acompanhando um herói trágico. Todos já sabem que Édipo vai casar com o própria mãe e ter um fim trágico e é por isso que o espetáculo é tenso desde o início. O horror é olhar o herói tentando escapar da sua tragédia e ao mesmo ter certeza de que ele não vai conseguir evitá-la. É muito parecido com a tensão que temos ao olhar a pintura que mostra a princesa Diana momentos antes do acidente fatal ou avião da TAM. 
De certa forma, a ideia de um horror iminente acompanha meus trabalhos. Mesmo na série Mise-en-scène, onde a personagem sou eu e nada sabemos sobre o final da minha história, procuro fazer com que a imagem traga essa sensação de ameaça, de vulnerabilidade. Acho que tem um pouco a ver com um medo muito atual que é esse medo vindo do terrorismo. A sensação de que alguma coisa pode acontecer a qualquer momento e com qualquer pessoa. 
A série Mise-en-scène é uma referência explicita ao teatro. Não só pelo título, mas porque é uma tentativa de trazer para a pintura questões como encenação/ não encenação, espontaneidade/ fingimento. Quando a gente para para pensar se aquilo é encenado ou não, começa a perceber que talvez tenha tomado um monte de coisa como testemunho do real, sem saber o que era de fato.
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