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IN/OUT Translúcido

Visitação

16/09/2004 a 10/10/2004

A artista coloca em debate a relação da arte com o seu meio e o contexto social mais amplo, ao qual ela está inelutavelmente enredada. Seu raciocínio pictórico não só incorpora toda a sala destinada ao seu trabalho – piso e paredes – como a paisagem externa à Galeria.

Niura Machado Bellavinha chega novamente à cidade trazendo sua noção expandida do que é pintura, de como se pode fazê-Ia, do que se pode expressar e conhecer por meio dela. E não deixa de ser uma expressiva demonstração de energia, de sua obsessão em experimentar continuamente, que ela não se limite a reproduzir, em escala necessariamente menor, a grande exposição – “Ateliê em Movimento / Sabará_Mangueira” – que ela realizou no Rio de Janeiro, na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, há pouco mais de um ano. A exposição ocupou as três salas que perfazem o conjunto expositivo da Instituição, as antigas cavalariças da grande mansão do Jardim Botânico, e ainda transbordou para a grande piscina existente no pátio interno da escola, emoldurada pelos quatro corredores por onde as salas de aula vão se distribuindo.

Dividida em quatro partes – A seco, A medida do impossível, Sabará/Mangueira e A onda como o tempo – a construção do oceano – ali a artista, evitando a solução clássica da pintura, compreendida como um tecido esticado sobre o qual se aplica a tinta, fazia com que a pintura se confundisse com o espaço da primeira sala, ocupando-a de cima a baixo com o laranja, o rosa e dois tons de vermelho. Realizava na segunda uma performance cujos resíduos eram compostos por uma centena de pirezinhos brancos de porcelana, sobre os quais foram depositados montículos de pigmento em pó com as mais diversas tonalidades de vermelho, além de uma projeção que tomava todo o fundo da sala, na qual podia-se assistir ao ritual silencioso das mulheres nuas, em meio a uma névoa vermelha progressivamente mais densa, colocando os pirezinhos no chão, caminhando sobre eles e, finalmente, soprando o pó colorido no ar. Espalhava, ainda, pela terceira sala uma série de caixas de acrílico transparente dentro das quais, como os Bólides, de Helio Oiticica, variando entre o rosa e o vermelho, as aparas e sobras das embalagens plásticas que acondicionam o pigmento para a sua venda e a projeção sobre vapor de uma escultura de poeira; mergulhava no interior da piscina seca ladeada por quatro grandes pinturas translúcidas, ocupando-a com um pequeno aquário em que projetava imagens capturadas numa performance que dias antes havia acontecido na área externa e sobre a piscina, alternando com a projeção do fundo do mar em uma de suas paredes. 
Pois, desta vez, Niura Bellavinha chega a São Paulo com três trabalhos novos, três possibilidades de pintura que confirmam sua posição singular dentro daqueles artistas profundamente empenhados em explorar os limites da pintura, fazendo com que ela atinja modos de expressão que em princípio, dir-se-ia, nada tem a ver com ela. Dois desses trabalhos não haviam sido vistos ainda pelo público paulistano: uma instalação realizada no Paço das Artes; um conjunto de pinturas na Galeria Nara Roesler; uma projeção de luzes sobre a superfície do lago do Ibirapuera, ainda não realizada, é verdade, mas ela, que realizou essa mesma intervenção sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, e sobre a lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, sabe que é tudo uma questão de tempo. O tempo dizia Niura Bellavinha – que reconhece nesse vermelho uma das cores da barroca Sabará de sua infância, pigmento que, soube mais tarde, vinha de longe, da China – lhe é uma matéria muito familiar. 
Em coerência com o proposto pelos três trabalhos, guiarei meu percurso de dentro para fora, comentando em primeiro lugar o reduzido, mas potente, conjunto de pinturas apresentado na Galeria Nara Roesler. 
luz (ar e água) sobre tela 
As pinturas seguem sendo vermelhas, cor sobre a qual a artista vem meditando persistentemente ao longo dos últimos anos. Talvez porque fisicamente seja a primeira cor, a frequência mais baixa, isto é, quando a matéria em vibração transforma-se em luz. Mas, visto sob um ângulo orgânico, o vermelho – como nos lembra a artista por meio do título da exposição” A vida” – é a primeira cor que todos nós, flutuando no interior do útero materno, enxergamos. 
Ela aplica a tinta em faixas verticais e horizontais, gradações que variam do vermelho mais fechado e escuro, o vermelho de baixa vibração, a primeira cor que se faz visível dentro do espectro de cores, até o laranja mais agudo, fosforescente. Sobrepõem as faixas umas às outras estabelecendo veladuras mais ou menos permeáveis ou chega mesmo a deixar alguns intervalos em que se vê o branco do tecido da tela. Faixas produzidas por jatos de água e de ar, ambos de alta pressão, que” lavam” e empurram o pigmento sobre a superfície da tela, obrigando-o a atravessar o tecido, encharcando-o, impregnando-o, fazendo com que a cor se funda à sua trama. Sem pincel que lhe sirva de extensão e sem tocar a face da tela, o exercício exige concentração, força física e muita precisão. A monocromia vermelha, posto que à distância é essa impressão que se tem, desfaz-se tão logo o visitante permaneça por algum tempo dentro da sala. À maneira da música que se vale dos intervalos de silêncio, das pausas longas à separação indifusa em que a queda de uma nota se sobrepõe ao ataque da outra, recursos para sublinhamento dos sons, a pintura acontece sob a forma de frases musicais ascendentes e descendentes que são interrompidas em síncopes bruscas para, então, mudar de direção tonal. 
Não há como não pensar em Barnett Newmann e Clifford Still. O primeiro pela segurança com que, em suas telas, os planos de cor vão se sucedendo, separados entre si por linhas. Linhas irregulares, traçadas à mão livre, ou exatas, confeccionadas com o auxilio de régua; linhas finas que fendem ou faixas largas que imprimem um sentido vertical. Quanto a Still, a interlocução ocorre por meio das telas que narram o confronto entre os planos de cor que se interpenetram lentamente, como se estivessem sujeitos à força da gravidade. Contudo, há que se ressaltar o movimento contraditório dessa força, de tal modo que enquanto uma cor, cedendo a seu peso, escorria para baixo, a outra, movida pelo mesmo princípio, escorria para cima. 
Mas há também Volpi e sua lição construtiva, sua meticulosa variação de uma fatura mais ou menos densa. Analisando suas telas, pode-se sentir os passos de sua mão empunhando o pincel, indo buscar a cor e as variações que ela pode conhecer apenas pela mudança de direção da pincelada sobre a massa de pigmento, estabelecendo assim uma relação diversa com a mesma luz que incide sobre o conjunto. 
As telas de Niura Bellavinha estão impregnadas dessas informações ao mesmo tempo em que estão impregnadas dos elementos, da força do ar e da água. Nelas, pode-se recuperar o efeito da água, fazendo do pigmento um líquido que escorre sobre o tecido, justamente no momento em que, empurrado para trás, agarra-se e tinge suas fibras. Nota-se o impacto do ar soprado com violência, obrigando o pigmento a se contrair, encorpar-se, porções moleculares de pedra que, ao atravessarem para o lado de lá, destroem, ainda que imperceptivelmente, a barreira de pano. Vistas à distância as pinturas deixam transparecer o método rigoroso, a firmeza do braço empunhando o equipamento, criando valas de cor profunda, extensões que o olho percorre velozmente, enquanto hesita em se deixar levar pelo subtom, mais grave ou mais agudo, que corre logo ao lado, por cima ou por baixo, subterraneamente. 
O gesto soma-se à força dos elementos tratados mecanicamente, ou, dito de outra maneira, o gesto torna-se ainda mais incisivo pelo recurso à água e ao ar. A pintura converte-se numa arena, um campo imaculado sobre o qual se havia semeado torrões de cor e que, repentinamente, vê-se varrido por uma tempestade furiosa, um acontecimento que passa arrasando tudo o que havia, deixando em seu lugar apenas as suas marcas. Curiosamente, nessas pinturas, a violência, em que pese sua intensidade, não é desordenada, mas progride em direções regulares, deixando de fora, intocadas, vastas extensões. 
luz sobre superfícies mais ou menos transparentes 
O trabalho apresentado pela artista – In-out Translúcido – na presente exposição do Paço das Artes, talvez seja, entre as muitas e ousadas experiências, a mais radical. O raciocínio pictórico de Niura não só incorpora toda a sala destinada ao seu trabalho – piso e paredes – como também, graças à transparência da parede de vidro (a “janela” que, cumprindo à risca a agenda da arquitetura moderna, atravessa de ponta a ponta o prédio da Instituição, separando-o do espaço externo), incorpora a paisagem lá fora. 
Antes de prosseguir, convém esclarecer que o prédio do Paço das Artes é a única parte ativa de um imenso complexo arquitetônico destinado a ser um centro cultural e cuja construção foi abandonada tão logo concluída a estrutura. Trata-se, pois, de uma precoce ruína que contrasta com a Instituição que é, com toda a justiça, um dos mais ativos centros de arte contemporânea do país. Consoante o projeto concebido pela artista, a sala construída para abrigar seu trabalho – ao contrário do padrão dos museus e galerias, projetados pela arquitetura moderna, que é o de criar paredes e esconder os vidros – não deveria vedar a vista externa, que dá para a área interna do conjunto, na prática, um enorme terreno baldio cujos anos de incúria permitiram que o mato vicejasse, fortalecido, como a vingar o que lhe roubou a monumental, e hoje inútil, massa de concreto. Discutindo o papel histórico da pintura, o território vasto e quase ilimitado em que ela se converteu contemporaneamente, Niura Bellavinha termina por colocar em debate a relação da arte com o seu meio e com o contexto social mais amplo, ao qual ela está inelutavelmente enredada. 
Ao contrário do experimento realizado na sala principal do Parque Laje, onde uma cor ocupava todo o ambiente, desta vez a sala foi revestida de um material metálico, cinza prateado, uma espécie de papel alumínio levemente enrugado e que, ainda que não seja reflexivo, garante, além da frieza do ambiente, que a luz natural reverbere, intensificada. Ingressando nesse ambiente luminoso, diante da parede de vidro – por si só transformada em pintura (afinal, o caráter representacional da pintura, que a levava a escamotear sua natureza de plano bidimensional para se assumir como uma janela virtual, não corresponde ao seu fundamento histórico 7) – três placas de acrílico transparente de grandes dimensões (2,20 x 3,20 metros), suspensas, afastadas entre si de modo a permitir que o visitante tenha uma visão do conjunto sobreposto e, ao passar entre elas, perceba também as nuances de cada uma. No corpo de cada uma destas placas, pinturastranslúcidas, está a reprodução aproximada de aspectos da paisagem lá de fora, feita em tinta sem pigmento, em linhas irregulares e transparentes. Na parede oposta a da janela, rolando em looping durante o horário de funcionamento da Instituição, do começo da tarde ao começo da noite, estão as imagens obtidas do mesmo precário “jardim” que se vê em frente. A interpenetração dos espaços interno e externo se dá lentamente, de acordo com o percurso do sol: se durante o dia a luz e os motivos vêm de fora, elementos que as pinturas da artista enquadra e destaca, com a chegada da noite – quando o mundo lá fora, com sua concretude decrépita, tomada de assalto por uma vegetação pobre, mas obstinada em crescer, ameaça esconder-se de nós, deixando-nos finalmente a salvo e abrigados no interior de uma arquitetura – a imagem projetada desta mesma vegetação vai ficando cada vez mais nítida até se impor, viva e colorida, dentro do espaço cinzento.
O que está dentro é o que está fora, e a pintura, assim decomposta, explodida a ponto de se agarrar nas paredes, passa do plano ao espaço tridimensional, converte-se em câmara de esclarecimento sobre o significado do mundo, se dá a conhecer por meio dela. Como o espectador, ao invés de se pensar do lado de fora da obra – como acontece nas pinturas fixadas nas paredes, mesmo daquelas de proporções monumentais que parecem engolir o corpo daquele que se coloca diante dela – ao entrar dentro dessa pintura, e ele provavelmente de imediato não se dará conta que ao entrar nessa sala está entrando dentro de uma pintura, ver-se-a capturado por ela. Mas não há dúvida que o aspecto mais sensível da armadilha consiste naquilo que ela dá a ver. Em vez de uma paisagem capaz de cumprir a promessa de devaneio, prazer ou liberdade que nós, geralmente, esperamos da arte, estamos diante de uma paisagem rebaixada, decaída, um sublime longe dos recursos arrebatadores das magníficas paisagens pintadas por Caspar David Friedrich (1774-1840) e William Turner (1775-1851). 
Diante desta peculiar pintura de Niura Bellavinha cabe perguntar: será lícito esperar que a arte, ainda hoje, siga cumprindo sua função histórica de qualificação da vida cotidiana, que entre suas molduras respire-se, enfim, a liberdade? A artista enfrenta o problema e o faz em acepção ampla, compreendendo a própria Instituição como uma moldura que, por mais que pretenda o contrário, está sob o efeito de uma lógica implacável que a transcende. Só mesmo uma ingenuidade alvar pode prosseguir pensando a arte como um “território livre”, surpreendentemente este é o tema da Bienal de São Paulo, o maior evento do país de arte contemporânea e que, talvez não por acaso, acontece ao mesmo tempo em que este programa de exposições do Paço das Artes. A arte não está livre porque ninguém está livre. Embora, como nos alerta Niura Bellavinha, ter consciência disso já é um passo importante. 
Comprometidos que estamos todos nós com a experimentação – o artista é quem insiste em levá-Ia adiante; a instituição que se arrisca ao exibi-Ia; o público que a defende pelo simples fato de ir até onde ela está – é preciso que tenhamos claro a capacidade que um meio político hostil tem em se infiltrar para tentar sua neutralização. E se todo trabalho artístico experimental é, por definição, crítico, deve-se reconhecer a sua importância, como é o caso em questão que, deslocando e intensificando ainda mais sua tônica crítica, pensa a pintura à luz da realidade social em que estamos inscritos. 
Luz sobre as águas 
Realizado inicialmente na Lagoa Rodrigues de Freitas e, posteriormente, na Lagoa da Pampulha, Espelho móvel (ReTurner), como já foi dito, aguarda o momento de acontecer no lago do Parque do Ibirapuera. Não é coisa para durar muito. Duas ou três sessões, duas ou três noites em que o lago do Parque – graças a uma série de holofotes potentes, arranjados ao longo de sua margem e estrategicamente apontados de modo a varrer a superfície líquida, ricocheteando sobre ela – irá se transformar num plano vermelho, um chão constituído de infinitos estilhaços móveis, oscilantes entre o vermelho escarlate e o preto. t provável que a cidade de São Paulo, de natural tão desatenta ao extraordinário, abra os olhos em espanto. 
Espelho móvel (ReTurner) é, até o momento, Q projeto de maior escala de Niura Bellavinha. A meu ver, é uma decorrência natural de quem, na prática, vem extravasando o âmbito da pintura; um projeto contido no interior das duas exposições comentadas até aqui. Da tela clássica de tecido, pensada a partir da sua saturação e do atravessamento da cor/luz pela água e ar, da pintura entendida como um espaço flexível, capaz de reunir a arquitetura e a paisagem exterior, pintura que se faz por meio da luz interceptada por superfícies transparentes de vidro e acrílico, e refletida pelo piso e paredes; Espelho … equivale a jogar luz sobre as águas, um suporte cujo caráter reflexivo torna seu alcance ainda maior. 
Assinale-se que a referência a Turner passa longe do trivial. O grande mestre inglês que, ao representar cenas da fúria marítima ou do fogo (inspirado, neste aspecto, no incêndio do Parlamento inglês, ocorrido em 1834), chegou a ser acusado de incoerência pela rejeição à estrutura tonal das obras clássicas, investindo na luz e na cor com uma energia que o levou a tangenciar a abstração, quase um século antes de Kandinsky. Se em Turner o espaço no qual ocorre a representação – tela ou papel – assume sua condição de espaço ficcional, Niura Bellavinha, estimulada pela história, arrebenta as paredes, em que suas obras, por uma convenção há muito estabelecida, estão confinadas, para jogar luzes sobre um lago e, assim, criar um incêndio dentro da noite.
Niura Bellavinha foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2004
Governo do Estado de SP