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Helena Martins-Costa

Visitação

03/05/2004 a 30/05/2004

O trabalho de arqueologia fotográfica da artista passa pela ressignificação de imagens rejeitadas que, apesar de terem atravessado o século XX e carregarem as marcas do percurso, sobreviveram por um triz ao desaparecimento.

—œTudo naquelas primeiras imagens era organizado para durar; não só os grupos incomparáveis formados quando as pessoas se reuniam, e cujo desaparecimento talvez seja um dos sintomas mais precisos do que ocorreu na sociedade na segunda metade do século, mas as próprias dobras de um vestuário, nessas imagens, duram mais tempo. Observe-se o casaco de Schelling, na foto que dele se preservou. Com toda certeza, esse casaco se tornou tão imortal quanto o filósofo: as formas que ele assumiu no corpo de seu proprietário não são menos valiosas que as rugas no seu rosto.— 

Walter Benjamin, Pequena História da Fotografia (1931).Helena Martins-Costa vasculha em sebos e feiras de arte em busca de fotografias antigas de espólios familiares, retratos em preto-e-branco provenientes de álbuns descartados pelos herdeiros, provavelmente por não ter restado qualquer ligação afetiva entre os homens do presente e aquelas esmaecidas figuras de seus antepassados, muitas já em avançado estado de decomposição. O trabalho da artista passa pela ressignificação destas imagens rejeitadas que, apesar de terem atravessado o século XX e carregarem as marcas do percurso, sobreviveram por um triz ao desaparecimento. Helena, no seu processo de arqueologia fotográfica, convive longamente com estes personagens —“ estranhamente imersos na típica luz branca que o tempo constrói —“ e assim identifica algumas tipologias. Por exemplo, as duplas que posam comportadamente, lado a lado, usando vestimentas idênticas (o popular —œpar de vasos—). Ou então as fotos de grandes grupos sentados, em geral famílias inteiras, em que se notam a pose frontal e o corpo rígido dos retratados, como se possuíssem plena confiança de protagonizar um momento de grande importância —“ o que não deixa de ser verdade, já que a fotografia era um procedimento trabalhoso e custoso.
Neste universo dominado pela inflexibilidade, solenidade e padronização imposta pela técnica, o que chamou a atenção de Helena foram as mãos. —œNos últimos anos tenho entrado em contato com uma quantidade incontável de retratos parecidos, em que praticamente não existe lugar para a subjetividade, nem nos rostos. Estas pessoas surgem como verdadeiras esculturas, evidenciando sua natureza estática e certo caráter monumental—, afirma ela, com a importante ressalva: —œa não ser pelo comportamento das mãos—. Segundo a artista, este é o único ponto em que certa identidade se manifesta, no qual se percebe uma tensão reprimida, e que portanto permite uma abertura, passagem que repentinamente se vislumbra e possibilita uma espécie de comunicação com a imagem.
Devido à lentidão do tempo de exposição, necessário para sensibilizar o negativo, nota-se um estranho adensamento, interior aos personagens fotografados e criador de uma corporeidade especial, como se essas mãos, com o passar das décadas, tivessem se transmutado em puro mármore. Vale a pena citar aqui um trecho de Pequena História da Fotografia, de Walter Benjamin: —œO próprio procedimento técnico levava os modelos a viverem não ao sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem—.
Ao penetrar na instalação de Helena para esta Temporada de Projetos, o espectador é surpreendido por imagens do passado, cujo índice aparente são os pares de mãos, seqüencialmente dispostos lado a lado, em grandes ampliações, como uma narrativa a ser decifrada, silenciosamente emitindo sinais para o homem do século XXI. As fotografias devolvem o olhar do visitante, tal qual um espelho, possibilitando que, conduzido pela fotografia, ele se dê conta do próprio comportamento. A artista, atenta observadora de seu público, já presenciou muitas vezes aqueles que, parados diante da imagem, assustam-se ao se perceberem reproduzindo aquelas posições das mãos, e imediatamente procuram recompor-se. Neste momento, ao se —œpresentificar— corporalmente como imagem, o visitante vai de encontro a uma das preocupações centrais na obra de Helena, lembrando-nos da responsabilidade envolvida no ato de colocar uma imagem no mundo. —œUma vez feita, ela permanece, e um dia retorna. Estará sempre à disposição para leituras inesperadas. Antes de dar início a esta série, decidi que, no lugar de produzir novas imagens, eu iria trabalhar com as que já existem.—
Quem entra na instalação pode topar com um visitante já sentado, inadvertidamente compondo outra cena, expandindo o campo da foto exposta. Esta —œvisão do segundo observador— —“ que se confunde com a da própria artista, por estarem ambos na mesma posição, observando alguém que observa —“ é uma questão cara a Helena, autora de uma série centrada na postura corporal do visitante de museus e galerias e sua relação com as obras. Naquele caso ela também identificou tipologias corporais, notando, por exemplo, que grande parte das pessoas coloca respeitosamente as mãos para trás ao se aproximar dos quadros (seria muito interessante estabelecer um diálogo daquelas obras com a produção do fotógrafo alemão Thomas Struth).
Fica claro que Helena Martins-Costa não está propondo um retorno romântico e purista aos primórdios da técnica fotográfica. Entre as múltiplas perguntas que esta instalação no Paço das Artes coloca, a mais urgente é: como reagirá o público atual frente a estas imagens? Qual será o retorno deste espectador tão pouco habituado a respostas silenciosas, muito mais íntimo da rapidez on-line, em que uma cena, tão logo capturada, imediatamente está à disposição de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo? Como se comportará este visitante que convive normalmente com a onipresença das objetivas, dos celulares e microcâmeras que transformaram a todos em paparazzi?
Governo do Estado de SP