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Gustavo Rezende

Visitação

24/11/2002 a 22/12/2002

A obra de Gustavo sempre foi pontuada por um fio de humor aguçado, por uma ironia que perpassa o conjunto de sua produção, relevando um artista inquieto e sempre disposto a promover rupturas em relação a códigos pré-estabelecidos ou a um sistema de aparências.

Existem as obras de arte que são determinadas pelo espaço que ocupam e existem aquelas que inventam seu próprio espaço. Os trabalhos de Gustavo Rezende pertencem à segunda categoria. Isso porque aliam a sensibilidade contemporânea à herança moderna, embasamento teórico ao prazer da fatura, e uma constante inquietação a uma inconfundível identidade. Neste sentido, “Plumb e a Vastidão do Império”, assim como “Taj Mahal e a Possibilidade do Amor na Era do Cubo Epistemológico”, é uma escultura emblemática. 
Uma forma arcaica (tanto por remeter ao modernismo quanto por ecoar um trabalho antigo do próprio artista) ergue-se, procura o prumo, fende-se, alonga-se no espaço. Revestida por um tumulto de cores e informações, faz o olhar perambular sem descanso, como diante de uma “dripping painting” de Pollock. A analogia com uma pintura reafirma-se na visível escolha de cores, na espessura das sobreposições e na colocação espatular das embalagens na peça, que constituem um invólucro social. Essa pele sinaliza hábitos de consumo e de identidade, como as roupas e os aviões em “O Paradoxo de Thompson Clark e os Pesadelos de Mark”. 
“Plumb” e “Taj Mahal” não são emblemáticas apenas do ponto de vista da obra de Rezende, mas da produção contemporânea de arte: são um passo além da “Brillo Box” de Andy Warhol. Negam a noção de arte como simples item de consumo, incorporando-a. Agregam à harmonia da forma pura a desordem psíquica e o descompasso da vida cotidiana – elementos que definem mais realisticamente o artista do que o suposto heroísmo deste sujeito em sua configuração moderna – e promovem uma promiscuidade entre materiais efêmeros e materiais sacralizados que faria Warhol regozijar-se. 
Essa paradoxal oscilação entre abstrato e planejamento e epifania que se flagra nas obras de Rezende é o que dá corpo a uma poética que, sem adesão cega à seara forma lista ou à conteudista, afirma sua presença onde quer que esteja: independe da aura institucional para ser vivenciada como arte, desdenha da aura” Em uma fotografia-escultura sem título, de 1996, em que o artista constrange uma escultura moderna em bandagens negras e a apoia em uma embalagem vazia de leite longa vida, a dimensão estética eclode da inquietação provocada por estes símbolos e da reafirmação da coerência interna de uma produção sempre inquieta. 
As primeiras esculturas da sua carreira eram formas arcaicas, fundantes. Esse novo trabalho retoma uma dessas primeiras obras (“Homenagem aos Dias Perdidos”), podemos ver nessa atualização de uma forma anteriormente trabalhada uma especte de arqueologia interna do seu próprio trabalho? 
Sim, isso faz parte do meu processo de trabalho, e surge de forma um pouco intuitiva. Mas eu não quis apenas colocar um elemento formal do meu trabalho, e sim ganhar o espaço. Tem a ver com a criação de um lugar, o que também aconteceu com “Homenagem”, onde eu estava preocupado com uma noção de tempo cíclico, de repetição, o que me incentivou no desenho do trabalho, e saiu uma forma muito simples. 
É interessa notar que existem algumas mudanças fundamentais entre os dois trabalhos, pois no desenho anterior havia uma tentativa de fechar o objeto no próprio desenho com a ideia do duplo, havia já um desejo de espaço, mas o duplo remetia a um diálogo interno da peça; aqui o espaço é transformado em lugar. Existe também uma mudança no material: o bronze e a madeira, ligados à tradição escultórica, dão lugar a caixas de produtos industrializados, banais. Estes materiais revestem uma estrutura, cuja forma remete não só ao trabalho anterior mas à representação de uma figura reclinada, ampliando o significado da forma inicial. Esta forma, sem o duplo, é um outro trabalho, com uma vocação para expandir-se espacialmente. 
A ideia de tautologia também vem à mente nessa operação, e esse conceito de equivalência e repetição está presente em vários outros trabalhos, desde as esculturas duplas até obras como “Gus Enterrando Seus Livros “, em que um homem cavando é representado por meio do ato de talhar a madeira. O que o interessa nesses 11 círculos viciosos 11 ou labirintos plásticos? 
Acho que existe antes um desejo de forma, um desenho, uma imagem e também idéias, vindas de experiências diversas, leituras e principalmente do próprio processo de trabalho, e eu vou costurando tudo isso. O trabalho é uma síntese, e, de onde quer que você olhe, há uma pista para estas relações. No início eu fazia estas formas duplas de maneira quase intuitiva, eram desenhos mais orgânicos que remetiam a formas arcaicas. Com o passar do tempo, estas relações se tornaram operações mais complexas, em que eu tentava aproximar o significado do título ao trabalho e de outras referências constitutivas dele. 
Acho que tem uma lógica que é uma espécie de reverberação: como uma coisa pode estar ligada à outra. Talvez seja um desejo de totalidade, também uma forma de clarear as coisas, não sei. Acho que procuro uma expansão do trabalho na relação entre os materiais e os procedimentos envolvidos no seu manuseio. Procuro às vezes reforçar uma ideia, então acho que a forma deve reverberar certa intenção balizadora: em “Gus” tem uma afirmação do labor como forma de conquista e de criação de um lugar; o objeto pode ser lido como um sinalizador, um marco, e tem uma fatura que remete à construção, mas que não é só física, é uma atitude diante das coisas. 
Além da relação que se estabelece entre a escultura “Plumb e a Vastidão do Império” e a dupla “Homenagem aos Dias Perdidos”, existe um diálogo forte, me parece, entre ela e a obra “Io] Mahal e a possibilidade do Amor na Era do Cubo Epistemológico”, porque um elemento cotidiano da vida contemporânea (caixas de produtos alimentícios e uma caixa de antidepressivo, respectivamente) irrompe em ambos provocando uma cisão no discurso da escultura moderna. Você podia falar um pouco do uso desses materiais? 
Eu não procuro uma cisão, eu junto fragmentos de uma utopia despedaçada, que foi nutrida pelo modernismo. Se há uma cisão, são procedimentos em relação ao trabalho e à vida, trazer algo de uma esfera privada, do meu cotidiano, aproximar mais o trabalho de uma experiência real, que, me parece, o modernismo rejeitava quando mantinha um compromisso com um certo idealismo. 
A maneira pela qual eu utilizo certos materiais acontece de forma específica em cada trabalho. No Taj Mahal, não é possível fugir do significado da caixa de Prozac, quase uma ironia em relação ao rigor formal da escultura, e do material (mármore), mas isto é ambíguo porque o próprio desenho da caixa é construtivo, e o desenho da peça é a reafirmação desta escolha, além do que, a caixa determina o tamanho do cubo. (A caixa, apesar de ter um caráter simbólico, não é uma representação.) 
Em “Plumb”, a embalagem funciona como um revestimento, quase pintura, mas há também um significado: o alimento é energia, constrói o corpo, há o acúmulo das caixas no tempo, a ideia de processo, mas há sobretudo a forma da escultura, que remete também à história da arte, ao modernismo e a certas representações de figuras reclinadas.
 
Essa escultura foi concebida para o Paço das Artes; que relações de tempo, circulação e participação você pensou para a criação desta peça? E como ela se relaciona com o desenho de fita crepe? 
Há várias idéias de tempo neste trabalho, há uma passagem de tempo relacionada ao uso das embalagens, ao tempo de armazenamento. Mas, eu penso que a ideia principal é mais vivencial e está relacionada à apreciação do trabalho, ao percurso que você faz para apreendê-Io. 
O que me chamou a atenção no Paço foi a horizontalidade do espaço. Quis incorporar isto na escultura, que é uma roda com um eixo quebrado que se estende por cinco metros, mais ou menos, criando um lugar, uma geografia, fundamentando a experiência na realidade e na ação, porque ela requer um deslocamento. A escultura de fita crepe cria um contraponto à horizontalidade do espaço e problematiza a questão da representação em relação à escultura “abstrata”: é uma figura humana em pé, parece bidimensional, pois é presa à parede, mas na verdade é um volume, e nisto também tem outra relação invertida com a escultura deitada, que, apesar de ser um volume, tem uma pele, quase pintura. 
Tem também a questão da fragmentação que aparece sempre nos trabalhos, como na “Plumb e a Vastidão do Império”: você tem as caixas recortadas que fazem a pele, a superfície do escultura; na outra é o próprio material, a fita, que constrói a figura, o material é a estrutura e o volume.
* Gustavo Rezende foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2002
Governo do Estado de SP