Visitação
17/07/2018 a 09/09/2018
Na mostra —ExercÃcio de Futurologia—, Monticelli expõe o resultado de uma pesquisa realizada a partir da situação do Paço das Artes que, há quase 50 anos, não conta, oficialmente, com uma sede própria
Clarissa Diniz
Abaixo, a entrevista de Ismael Monticelli a Clarissa Diniz sobre a mostra —ExercÃcio de Futurologia—.
São muitos os golpes em curso. O assalto à democracia não se dá, como temos visto, sem o desmonte das instituições democráticas. Não apenas a democracia representativa, mas a própria ideia de espaço público parece ter suas premissas postas em xeque, num acelerado e irresponsável processo de desarticulação social que passa, inevitavelmente, pelas polÃticas culturais. Nesse sentido, o fechamento —ou a ameaça— a uma instituição é sempre alarmante.
No Brasil recente, intimidações dessa natureza têm se tornado cada vez mais frequentes, configurando um cenário de desmanche do qual o Paço das Artes tampouco escapa, e ao qual é necessário resistir e responder de modo autocrÃtico e em luta. Nesse contexto, faz-se ainda mais urgente inventar alternativas futuras ou mesmo ousar projetar-se para além do presente niilista que, midiática e politicamente, se quer insinuar como única realidade possÃvel. Se, agora, essas prospecções parecem especialmente nebulosas nos termos da discussão polÃtica hegemônica, pode-se propor outras portas de entrada para a imaginação coletiva de um porvir, como nos provoca o projeto —ExercÃcio de Futurologia—, de Ismael Monticelli.
Pois, como nos faz ver o artista, ainda que saqueados os direitos ao espaço público (como na experiência de uma instituição cultural que perde sua sede fÃsica), o exercÃcio da imaginação contribui, efetivamente, para que escapemos —mesmo que não sem sequelas— Ã violência absolutista do poder.
Clarissa Diniz: Ismael, no momento da seleção dos projetos desta Temporada, na discussão acerca da pertinência das obras inscritas, seu trabalho chamou especial atenção por observar as circunstâncias atuais do Paço das Artes —uma vez que, hoje, é uma instituição sem sede e, também por isso, em processo de transformação. Mais do que isso, seu projeto era muito instigante pela disposição em se relacionar e em intervir diretamente nesse contexto. Como foi, então, que se deu sua aproximação ao Paço das Artes antes e, em especial, ao longo do desenvolvimento do projeto? O que você poderia compartilhar conosco acerca da experiência de ser um artista/público e, depois, um artista/participante/cúmplice de uma instituição cultural em momentos de desamparo institucional? O que essa experiência tem trazido para sua compreensão da atuação de um artista hoje?
Ismael Monticelli: Minha aproximação com o contexto do Paço das Artes se deu, inicialmente, Ã distância, quando notÃcias sobre a sua situação começaram a borbulhar na imprensa e nas redes sociais no final de 2015. Talvez o desalojamento da instituição tenha chamado minha atenção porque existe um caso semelhante em Porto Alegre, que frequentemente reacende acalorados debates na cena artÃstica local. O MAC-RS é uma instituição que existe há 26 anos, possui um acervo com mais de 3.500 obras, mas que, assim como o Paço, nunca conquistou uma sede permanente para seu funcionamento.
No momento em que foi publicado o edital da Temporada de Projetos 2018, tendo a impressão de que ainda não parecia haver uma resolução satisfatória para a situação —a sonhada —sede própria e definitiva para dar continuidade com qualidade e autonomia a suas atividades— parecia estar longe do horizonte da instituição—, a partir dessa premissa que pensei em elaborar uma proposição. Inicialmente, o projeto foi concebido como uma proposição ficcional, um —exercÃcio de futurologia—, que partia de uma conjuntura e de uma hipótese utópica: se pudéssemos idealizar um museu como um organismo vivo, atuante na apresentação da arte em compasso com o presente, comprometido com a experimentação, a pesquisa e o pensamento; se pudéssemos conceber um espaço sem pensar nos seus recursos orçamentários, no dinheiro e ao que nele se atrela —os jogos de poder, as ideias, os valores, os interesses sociais e polÃticos de uma pequena minoria governante; se a arte não fosse encarada como bem supérfluo; se a cultura não fosse utilizada em tempos de crise como moeda de troca para uma falsa sensação de —equilÃbrio financeiro estatal—, imagem vendida amplamente pelo governo como estratégia econômica; como este museu seria? Qual seria o seu conceito e seus objetivos? A quem ele se destinaria? Quais seriam seus usos e atividades, seu programa de necessidades? Onde ele seria instalado? Que forma a construção assumiria? A partir dessas perguntas, seria elaborado, com a colaboração da equipe do Paço e de artistas, crÃticos, curadores, arquitetos, museólogos e historiadores, um anteprojeto arquitetônico para a sede definitiva da instituição.
No entanto, quando comecei a desenvolver o trabalho, o projeto original pareceu não fazer mais sentido. A meu ver, o que provocou uma mudança radical na proposição foram as entrevistas e conversas que realizei, tanto com a equipe do Paço quanto com outros agentes do campo cultural. Penso na ficção como uma ferramenta profunda para se pensar sobre o cotidiano. Ela, muitas vezes, nos auxilia a vislumbrar questões esquecidas ou dormentes, ao mesmo passo em que, de forma poética e aberta, amplia nossa visão acerca dos futuros possÃveis, nos faz imaginar e sonhar, num claro esforço de esburacar o tecido repetitivo das conjunturas aparentemente inabaláveis. Esquecer os sonhos ou esvaziá-los de sua potência de enigma pode converter-se em uma estratégia de fixidez aos lugares já visitados e dos quais já conhecemos os contornos. A partir disso, comecei a problematizar meu projeto: seria ético ficcionalizar sobre uma realidade dura e frágil como aquela que estava constatando? Será que, todos nós, quando nos encontramos fragilizados por uma crise, não nos sentimos momentaneamente privados do direito de sonhar, de imaginar, de vislumbrar um futuro? Será que, em momentos como esse, a ficção pode parecer desprovida de sentido e fundamento, pode parecer um exercÃcio impossÃvel de imaginação? Nesse momento, entendi que existiam dois caminhos possÃveis. O primeiro seria ignorar o encontro com a realidade da situação, adotando uma espécie de visão de sobrevoo cômoda, distanciada, como observar uma paisagem ao longe, existindo calmamente, e, a partir disso, mantendo-me fiel e Ãntegro ao projeto original. O segundo —o caminho escolhido—, seria debruçar-me sobre a situação para ver, para pensar melhor e seguir o desenvolvimento do trabalho conforme as pulsações que são próprias ao contexto que estou lidando.
Acredito que essa experiência me trouxe a compreensão de que a posição de um artista que age em/a partir/sobre uma realidade deve basear-se em uma espécie de escuta receptiva. Usando tuas palavras, Clarissa, talvez o artista deva estar sempre atento a sensibilidade e à especificidade do contexto, evitando projeções e vontades pessoais sobre o que de fato ocorre em determinadas situações. Li, certa vez, um conceito que Goethe desenvolveu na sua obra cientÃfica, que parece se aproximar disso. A ideia de —empirismo delicado—, que se caracterizaria por uma aproximação suave do pesquisador com o objeto de pesquisa, operando em uma espécie de escuta. Em vez de buscar a harmonia com o que é observado, o empirismo delicado procuraria evitar, na medida do possÃvel, adaptar suas percepções a qualquer pré-concepção, baseando-se na premissa de que os pensamentos vêm à luz como uma parte implÃcita de uma experiência mais profunda dos fenômenos investigados. Penso que, talvez, a atuação do artista hoje possa se desenrolar nesta perspectiva.
CD: A questão ética que o projeto e o desvio de sua versão originária lhe colocaram passa pela atenção à violência das artes, posto que nos faz pensar em como o desejo de ficcionalizar a alteridade pode se converter num gesto arrogante diante da realidade do outro. Como você nos conta, sua responsabilidade de artista foi a de assumir a dificuldade de ficcionalização diante do atual contexto do Paço das Artes e agir menos como um criador de universos possÃveis/alternativos, senão mais como uma espécie de terapeuta diante das impossibilidades de criação percebidas por seus interlocutores. Seu gesto deslocou-se da —autoria de um novo museu— para lançar perguntas, escutar, tornar as falas existentes visÃveis e rearticulá-las junto a outras experiências de museus, fazendo do caso do Paço das Artes uma oportunidade preciosa para pensar as circunstâncias gerais das instituições culturais do Brasil.
Por outro lado, se o exercÃcio de futurologia sobre/para o futuro Paço pareceu deslocado, ele certamente manteve seu caráter ficcional não ao projetar-se sobre seu assunto —a instituição cultural Paço das Artes—, mas sobre seu público. Ao endereçar publicamente inquietações em forma de cartazes, ao colecionar e expor conceitos de museus, ao inscrever perguntas-chave nas paredes da exposição e ao apresentar maquetes de museus atÃpicos, me pergunto se sua ficção não teria se deslocado para a audiência, como se —discursiva, polÃtica e simbolicamente— fundasse um público efetivamente interessado nesse debate. Público esse que, por sua vez, parece ter estado rarefeito quando o Paço perdeu sua sede ou quando o Museu Paulista fechou as portas. Sua futurologia museal não poderia, assim, ser entendida como um exercÃcio de imaginar a comunidade dos museus —o que talvez seja, desde sempre, a maior de nossas ficções?
IM: Geralmente, meus trabalhos nascem de perguntas e, essas perguntas, são formuladas a partir das poucas convicções —muito pessoais— que teci até o presente. No caso do projeto ExercÃcio de Futurologia, ele partiu da crença de que os museus são, por si só, instituições valiosas e que, desta forma, um mundo com mais um museu —não importa o quão ele esteja desgastado, dilapidado e adormecido— seria um mundo melhor. Mergulhei na proposição querendo enxergar nela o museu como a última esperança, porque, talvez, como disse Walter Benjamin, entre as moradas de sonho do coletivo, os museus possam se sobressair. O que ocorreu foi que essa convicção se esgarçou durante o processo de trabalho. O fazer tornou-se cambaleante, trôpego, cheio de passos incertos. Penso que, quando as convicções se fragmentam, surge a crise, obrigando-me a procurar outras posições, variando coordenadas, referenciais, lugares e funções desempenhadas. Possivelmente, esse —fazer cambaleante— transpareça na forma final do trabalho, pulverizado em dúvidas. Refletindo sobre tua colocação, Clarissa, talvez minha ficção realmente tenha se deslocado para a audiência.
Isso me lembra de um momento bastante especÃfico, há alguns anos atrás, quando estava preparando uma exposição em Porto Alegre. Propus para a curadoria apresentar alguns quebra-cabeças que estava desenvolvendo na época. Eles seriam disponibilizados para que o público pudesse manipulá-los. A curadoria me questionou: —Você acha que, realmente, alguém vai parar para montar esses quebra-cabeças? Ninguém vai mexer nisso. Ninguém vai entender—. Na época, não pude responder essa pergunta. Ou, melhor, não tive meios para argumentar, devido ao tom retórico em que ela foi colocada. Essa lembrança me acompanha e, em certa medida, formou meu —público ficcional— com a indagação: será que nós —artistas, curadores, educadores, instituições museológicas, etc.—, não subestimamos a capacidade intelectual, a paciência e a curiosidade do público? Será que não desprezamos a sua predisposição de ver e de experimentar, sua capacidade de fazer conexões?
Acho que, a partir da construção de “ExercÃcio de Futurologia”, redirecionei a minha esperança depositada sobre os museus para o público. Quem sabe a audiência possa repensá-los como fóruns de ideias em torno de questões sociais, polÃticas e culturais urgentes. Afinal de contas, as instituições ainda podem tornar-se lugares que interessem a todos, onde o diálogo pode ser construÃdo, onde batalhas intelectuais podem ser travadas, onde debates públicos se estabelecem de forma bem-vinda. “ExercÃcio de Futurologia” é oferecido como uma pequena gota que só o público pode transformar em oceano.