Visitação
22/03/2004 a 18/04/2004
O que se passa acima do lago ganha correspondente invertido no reflexo. A arquitetura e toda ação ali ambientada têm imagem especular, mas o espelho, o duplo do território, tanto aumenta quanto anula o valor das coisas.
Valdrada, uma das —cidades invisÃveis— descritas por Marco Pólo ao imperador mongol Kublai Khan, na obra de Ãtalo Calvino, foi construÃda à beira de um lago, em cujas águas se reflete outra Valdrada, de cabeça para baixo. —Nada existe e nada acontece na primeira sem que se repita na segunda—. Nem por isso as —cidades gêmeas— são iguais. O que se passa acima do lago ganha correspondente invertido no reflexo. A arquitetura e toda ação ali ambientada têm imagem especular, mas o espelho, o duplo do território, tanto aumenta quanto anula o valor das coisas. As imagens da série Estereo-escapes, de Daniel Trench, rompem a continuidade de São Paulo no tempo e no espaço, também pelo artifÃcio do rebatimento de um corpo em outro. Cada panorama da avenida Paulista — registrado a cerca de 30 metros de altura — divide o campo da foto ou do vÃdeo com sua reprodução ao avesso. O par de imagens compõe, com os topos de edifÃcios, formas de um robô cromado constituÃdo por membros articuláveis, de um totem maia na posição horizontal, ou, ainda, da representação gráfica de ruÃdos e sons. O tÃtulo, a propósito, vem desta semelhança entre as paisagens urbanas (as cityscapes) e os —desenhos— de frequências estereofônicas.A continuidade da pesquisa desemboca em Estereo-escape video-instalação (2003), formada por dois vÃdeos — um gravado à luz do dia e outro, à noite —, projetados em paredes opostas de uma sala. Os filmes são exibidos em loop, sem começo nem fim. E o trabalho realiza mais uma dobra na série, ao transformar a imagem em som. A trilha sonora é resultado da transposição para o áudio daquilo que a figura representaria caso ela fosse o que agora também é: a visualização de uma música. As sequências de luzes nos painéis de néon e das linhas determinadas pela altura irregular dos arranha-céus convertem-se em ritmos e timbres. No canto noturno da instalação, alternam-se blips e bloops sintetizados de acordo com o piscar dos luminosos e, no outro extremo, pela manhã, variam a intensidade e o volume de um barulho ininterrupto. Ouve-se a polifonia apenas no centro do ambiente.Em uma das fitas, a imagem e seu duplo estão em sincronia. DifÃcil percebê-la, pois só as nuvens se movem, lançando sombras sobre os prédios, em velocidade três vezes mais rápida do que em tempo real. O artista também interferiu no andamento do segundo filme, quebrando a simultaneidade entre a cena noturna que aparece no alto da projeção e seu rebatimento. O descompasso faz com que as luzes cruzem a linha divisória entre a imagem-matriz e sua cópia, quase borrando a área de distinção. Mesmo assim, não importa onde o visitante repousa os olhos, há sempre duas cidades: a que reconhecemos de memória e esta replicada ao infinito; Valdrada e Valdrada.