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Alexandre da Cunha

Visitação

20/03/2006 a 07/05/2006

A obra do artista levanta algumas questões próprias ligadas ao desejo, à memória afetiva do espectador e ao cruzamento de fontes eruditas e populares. A experiência do objeto, para o artista, está diretamente ligada ao ato de desejar.

—œO negócio hoje em dia é que quando você está casado, você não precisa nem sair de casa quando está afim de alguma coisinha especial. Arranja o que se quer sem sair da intimidade do lar” 
Don DeLillo, Ruído Branco (1984).
—œTake me out tonight/ Where there’s music and there’s people / And they’re young and alive / Driving in your car/ I never never want to go home / Because I haven’t got one / Anymore”
The Smiths, There is a Light that Never Goes Out (1987).
Em 2003, ao escrever sobre a participação de artistas brasileiros na Bienal de Veneza (uma bienal cheia de brasileiros e de Brasil), eu terminava minhas considerações a respeito da presença de Alexandre da Cunha com as seguintes palavras: “Sua obra vem adicionando um ingrediente novo na escultura brasileira, um meio passo entre o que é programado e o que é dado pelo material e pelas conformações preexistentes—. Leitor neófito da sua obra, embora apontasse uma questão formal importante, eu ainda não estava atento para as implicações politicamente mais interessantes da minha descoberta. Mais do que a representação do precário e do banal (como de fato aquele contexto reforçava), a produção do artista, nesta década, tem apontado para novas possibilidades políticas de atuação dentro da arte de apropriação.
—œA estratégia da apropriação”, escreve Douglas Crimp, —œnão é mais o atestado de uma atitude específica diante das condições da cultura contemporânea—. Se a apropriação, diz Crimp, é o marco principal da arte e da cultura na pós-modernidade, será tarefa do crítico distinguir as diferentes implicações políticas no seu uso. Neste contexto e também naquele de uma nova economia global, a obra de Alexandre da Cunha levanta algumas questões próprias ligadas ao desejo, à memória afetiva do espectador e ao cruzamento de fontes eruditas e populares. A experiência do objeto, para o artista, está diretamente ligada ao ato de desejar. Um desejo que se acha mais precisamente orquestrado no contexto do meio de arte: assim, sua obra, ao contrário da tendência de questionar o lugar da arte, traz para o interior do lugar de sempre (museus, galerias, revistas etc.) um novo lugar. Refiro-me não simplesmente ao desejo por distinção que a arte suscita. “Não só mudar o contexto, trazer o universo do cotidiano para o universo das artes, mas também buscar elegância, transformar uma coisa não necessariamente feia, mas industrializada em massa, banal, e ver beleza, elegância, nisso—. Ao se apropriar do universo da cultura popular, da economia de massa e da arquitetura informal, e também do design, das artes decorativas e da história da arte, muitas vezes combinando esses elementos em um mesmo projeto, Da Cunha elege a escultura e o meio de arte como plataforma para o reprocessamento de desejos, um lugar para uma economia mista, de valores apropriados —“ valores do mercado, da história, da técnica, do espectador. Por isso sugiro que se considere suas operações em termos de contrabando, sedução e subversão, dispensando-lhe maior interesse não tanto pelo questionamento da autoria, mas da autoridade, ao tratar de diferentes repertórios e coloca-los em curto-circuito.
As primeiras obras de Alexandre da Cunha com as quais tive contato fazem parte da pesquisa que o artista iniciou em 1998, e era a elas que eu me referia quando escrevi sobre Veneza. São estranhas construções, quase todas baseadas numa simbologia do corpo, em noções antropomórficas e ergonômicas: macas, barracas, muletas. Essas obras são construídas com materiais descartados, após seu uso na função original: materiais banais, retirados do mundo dos esportes, da limpeza doméstica, do vestuário. Suas construções nos remetem a corpos prestes a serem ocupados ou recém-abandonados —“ “coisas que eu achei na rua, na frente de casas, em quartinhos, em despensas, prontos pra ir pro lixo”. Obras como Stretchler (2000), Multiuso (2001) e Safe and Dry (2001) já apontam interesses que vão permanecer na obra do artista. Um deles é a apropriação, que aqui parecia estar presente mais para “salvar” esses objetos do seu destino de lixo, transformando-os em objetos de arte —“ o universo de coleta faz dessa prática algo não muito distante daquela dos imigrantes que se apropriam dos dejetos nas ruas das grandes cidades europeias, neste caso, para reaproveitá-los em suas casas e vidas. O outro interesse é pela demarcação da escultura como campo para sua prática, o que continua sendo importante para o artista. Neste aspecto, há um elemento recorrente em todas essas obras que é a gambiarra, agenciada sempre pela fita adesiva, que promove reparos e fixação aos objetos e coloca suas partes juntas, fundindo os corpos como fazia a solda nas esculturas de Picasso.
Na produção mais recente de Da Cunha, uma série me despertou especialmente para o entendimento do valor subversivo de suas operações. Esta série de objetos (Emerald (2002); Murano (2002); Tango (2002); International (2002); Royale (2003); Crystal (2003); Amber (2003); Smeraldina (2004); Di Corsica (2004); Ibéria (2004); entre outros) é produzida a partir de garrafas descartáveis de plástico, que são transformadas —“ com cortes, inversões e fusões —“em preciosos cálices, taças e garrafas do mais luxuoso cristal nas mais diversas e luxuosas cores. O que mais interessa nesta operação é a quantidade de camadas de significados que ela alcança. Em primeiro lugar, trata-se de transformar lixo em arte (antiga operação da arte), como também garrafas em copos (operação disseminada popularmente), porém, não funcionais. O design original dessas garrafas com ornamentos, relevos, frisos e cores que lhes conferiam um status “desejável” —“ de alguma maneira, já era uma tentativa de transformar plástico em vidro. Ao selecionar esses objetos e reprocessá-los (tanto física quanto simbolicamente), o artista promove um curto-circuito de valores. A obra de arte simula objetos de desejo elitizados (cristais) por meio de materiais precários, retirados de sua função original (plástico com design de vidro), e ironicamente os devolve a outro sistema de culto de objetos supostamente mais nobre: aquele da arte. Como resultado, o espectador é chamado a recompor referências numa alternância entre o banal e o desejo pelo belo.
Para serem exibidos, esses objetos são cuidadosamente arranjados em prateleiras e devem ser mantidos assim mesmo por seus proprietários quando vendidos (numa operação que, de fato, o artista não controla). Quando da sua exposição no Museu da Pampulha, eles foram instalados em elegantes prateleiras transparentes contra uma suntuosa parede de espelhos, fora do alcance da mão, dando assim ênfase ao seu caráter precioso ou caro. “Gosto do aspecto perverso e deste comentário que o trabalho sugere em relação ao colecionismo fetichista. Foi uma das questões que eu sempre quis enfatizar com estas peças”, foi o comentário do artista quando desenvolvemos a ideia da montagem. Isto não garantia, no entanto, que soubéssemos do efeito ilusionista que a operação propiciaria na exposição. A maioria das pessoas (público de arte) acreditou que eram de fato de cristais.
A família de copos de Da Cunha pertence a um universo mais amplo de obras suas que lidam, como estas, com a apropriação não apenas de objetos descartáveis, como também de vocabulários do design, da cultura popular e da história da arte, que estão sempre em constante troca. A série de vasos é um exemplo claro disso: pneus apropriados, cortados e invertidos, transformados em vasos e pintados com tinta esmalte. Uma curiosa relação, quase perversa, entre pintura e suporte (a tinta enrijece o objeto maleável, congelando-o) pode ser lida como a metáfora do encontro dos dois procedimentos —“ estes containers feitos de pneu são de fato comuns em algumas partes do Brasil e dos Estados Unidos, mas não é comum pinta-los tão melindrosamente e coloca-los sobre pedestais. Mas, afinal, estas são esculturas, e não objetos funcionais. Numa outra série de obras, Ebony Terracota (2002), o artista cria peças com desentupidores de borracha, empilhando-os, invertendo-os e organizando-os sobre pedestais, como potes raros de uma escola desconhecida, deixando escapar uma piada duchampiana (pensamos nos desentupidores como versões cínicas do sanitário). De Duchamp a Brancusi, estão as colunas Platinum (2004), em diferentes versões, que prestam homenagem aberta ao escultor, empilhando utensílios domésticos de metal (baldes de gelo, formas de bolo e de empatia) em torno de um eixo, infinitamente. Em todas essas obras, o artista pensa na sua prática como escultórica a princípio, e a constituição dos objetos se vale de noções como equilíbrio, torção, inversão, justaposição, que são agenciadas a favor de coincidências industriais e situações pré-determinadas.
Pensando em Brancusi (e em Duchamp), lembro-me da história da apreensão da escultura do artista, L’ Oiseau dans L’Espace (1923), pela aduana americana em 1927, que reclamou a cobrança de impostos aplicáveis ao objeto (que julgavam ser industrializado) e se recusou a aplicar-lhe a exoneração fiscal que franqueia as obras de arte naquele país. Pensando nestes termos, parece-me que a operação de Da Cunha é a inversa: aplicar um imposto “de arte” sobre os materiais francos de suas esculturas. “Gosto de pensar que o trabalho tem este elemento subversivo em relação ao seu próprio valor. Essas noções, esse jogo cheio de truques, que envolvem e lidam com questões de aquisição, de domínio, de autoria, de poder e de reprodução são elementos essenciais na minha produção—.
—œMeu trabalho é como se fosse uma mesa de som, onde diferentes elementos estão sempre presentes. Trabalho com a modulação e a variação desses elementos”. Com essa imagem, Alexandre da Cunha aproxima seu trabalho do processo de construção da música pop. Em termos de economia de meios e processo, penso que há em sua obra também algo “do it yourself” do punk e de outras culturas underground: uma artesanalidade, um fazer esculturas como quem faz fanzines, mas sempre de olho no repertório erudito internacional. Há um certo desemprego, uma escala de mesa, um nunca agenciar meios externos na execução (ou só muito raramente), como se tudo o que pudesse ser feito em termos de empenho físico devesse necessariamente estar ao alcance da mão. Os punks parecem ter legado isso à cultura da música eletrônica e do DJ: o individualismo na hora de fazer; não a superação da técnica, como eles pretendiam, não os três acordes, mas o HD como garagem, uma dose de independência artesanal. Uma informalidade, não mais a fábrica cheia de trabalhadores (com ou sem hierarquia), mas um indivíduo. As esculturas de Alexandre preservam esta escala. Um dado de ambiguidade: às vezes, não sei se as esculturas de Da Cunha parecem muito anônimas ou muito autorais (algo que se repete na minha experiência com a música eletrônica). Outro curto-circuito: às vezes, elas parecem ser as duas coisas, indistinta e simultaneamente.
Alarguemos o paralelo entre arte moderna e música pop: o funk carioca começou a ser feito como apropriação do miami bass, subvertente do hip hop americano, e hoje é cada vez mais apropriado por DJs e produtores do electro europeu. Quando a arte vai promover esta inversão? Será que esse processo vai acontecer um dia, ou estamos fadados a sermos lidos sempre pelo Hemisfério Norte como não ocidentais —“ algo que incorre não apenas devido a uma grande ignorância estética, mas, mais além, a uma estupidez no que se refere à geografia? Da Cunha tem se valido da condição nômade e híbrida para fazer seu trabalho, escolhendo materiais de acordo com o local onde vai mostrá-lo, aproximando o Mercado Central, de Belo Horizonte, das Pound Shops, de Londres. “Acho que minha facilidade/flexibilidade de assimilar outras culturas (referindo-se aos repertórios de sua pesquisa) vêm também da minha história pessoal, do fato de ter nascido no Rio, de família gaúcha, ter morado em Guarapari, Belo Horizonte, São Paulo e Londres e ter a constante sensação que posso me mudar a qualquer momento sem muito drama—.
Algumas obras do artista têm também cruzado a linha para campos minados, transferências e contrabandos mais polêmicos entre culturas populares e eruditas. Carro Novo (2004), o projeto que apresentou na individual na Galeria Luisa Strina, em 2004, encontra-se neste campo. O projeto consistiu na apropriação de uma carroça, do tipo que os catadores de papel usam, que o artista pintou numa cor metálica com tinta automotiva, uma patina que promove um encontro radical e (novamente) perverso entre o suporte e a pintura: fundir uma carroça precária e um carro novinho em folha. Não é gratuita a escolha do veículo utilizado pelos catadores de papel, na verdade, o nome da obra é genérico, porque os carroceiros operam como o grande motor da reciclagem em pequena escala, reprocessando objetos e promovendo sua circulação em camadas mais pobres da sociedade. Existe uma aproximação entre as atividades do artista e aquelas dos carroceiros. Mas, sobretudo, esta operação reitera a enorme diferença que há entre esses dois mundos. O artista parece nos perguntar: não seria apenas a partir da diferença que poderíamos assumir uma posição? O projeto nega a tendência à transposição de contextos com pruridos jornalísticos e supostas boas intenções. Aqui, o transporte é radical mesmo. Os mundos, unidos por um átimo, continuam separados.
A utilização da economia informal como campo passível de apropriação voltou a surgir no ano seguinte, na individual na galeria Vilma Gold, em Londres, desta vez no campo da imagem. Aqui, parece que as démarches do artista nunca estiveram tão próximas daquelas da música pop. O projeto utiliza o mostruário de vendedores ambulantes que comercializam um líquido utilizado para transferir imagens de revistas e outros materiais impressos para camisetas. O repertório dessas amostras formou um banco de dados de dezenas de imagens, que o artista selecionou e misturou à maneira de um DJ. Transferir, neste caso, é desejar: um galã machão das novelas, uma mulher gostosa com os seios de fora, um herói dos quadrinhos, um sorvete delicioso, um carro novo, um ídolo pop. Transfers, no caso, é a passagem das figuras dos mass media para a camiseta (que se torna uma performance ao vivo de pirataria urbana, quando feita pelos vendedores), como também do universo dos camelôs para aquele dos artistas (o Soulseek.org, na tela ao lado, lembra-me que as trocas de arquivo on line são chamadas de transfers). A cada uma das colagens feitas com as amostras, chamadas Samplings (2005), o artista apôs uma moldura, conferindo ainda um sentido museológico àquilo que está no limite do clandestino (mas tão próximo das operações da arte).
Em outras obras do artista, o contrabando tem mão-dupla. As estruturas de autoconstrução Coberturas (2004-2005) são um bom exemplo disso. Feitas com encaixes de tubos e conexões de pvc, cobertas por folhas plásticas atadas com durex, essas esculturas fazem referência a construções temporárias, arquiteturas intuitivas de barracas ou de móveis, entretanto, formalmente, sua leitura nos leva para o universo da escultura de Richard Serra ou José Resende, por exemplo. O caminho é inverso. Reconhecemos a forma, mas a forma que atrai nos é traída pelo material, num quase pastiche daquela elegância. A referência a Donald Judd na construção de Amarelinho (2005) opera com a mesma chave. Trata-se da primeira obra do artista, em escala monumental, realizada com um objeto bastante conhecido no Brasil: a caixa térmica de isopor, associada ao universo do lazer, da praia, das férias. Articulados por meio de parafusos, cada bloco teve sua posição de uso original subvertida, criando um padrão construtivo que resulta em uma parede que remete a um móvel modular ou ao cobogó modernista. Aqui, a relação entre funcionalidade e forma surge ainda mais intensa: escultura com função ou objeto de design transformado em escultura? E a simples visão dessas caixas de isopor é motivo para weekenders brasileiros de todas classes fazerem outra pergunta: E ai, depois você vai encher de cerveja?”.
Eu gosto da ideia de “contrabando” porque está associada ao aspecto ilegal, marginal, mais obscuro. É o intercâmbio sem Iicença, o tráfico, a treta. Quando usei a carroça pra fazer Carro Novo (2004) e os transfers do camelô para os Samplings (2005), era muito importante não creditar as suas origens. O importante é fazer o meu tráfico com o carroceiro, pagar meu preço, contar a minha história pra ele, ouvir a dele, “vender meu peixe” e “comprar o dele”. Fazer o trabalho de arte e passar o bastão pra frente.
Poder-se-ia pensar a obra de Alexandre da Cunha, retrospectiva mente, numa tradição brasileira contemporânea que associa o objeto de arte —“ e, mais que isso, a prática artística —“ a um questionamento crítico e, muitas vezes, irreverente e conspirador, de estruturas culturais mais ou menos nacionais, mais ou menos típicas do meio de arte. Essa tradição recente (eu a vejo mais neste sentido do que no de uma escola ou uma linhagem, já que ela aparece na obra de artistas de formação e origens das mais diversas) aproxima crítica institucional de critica da cultura, acredita no poder do paradoxo e introduz questões dialéticas para expandir os limites do instituído. Pensamos primeiro no acionismo de Flávio de Carvalho e no seu New Look para o Verão (1956), com sua genuína preocupação sociofuncional para com o indivíduo urbano e moderno, vivendo em um país dos trópicos (“lavagem própria todas as noites em 3 minutos. Seca em 3 horas”. “Cores vivas substituem desejos de agressão—). O traje criado pelo arquiteto paulista propunha um maior bem-estar climático para este indivíduo, mas tal bem-estar só poderia ser alcançado por meio de uma profunda superação de tabus culturais: um traje, uma atitude, uma exceção, fora do padrão —“ daquela época e de hoje.
Poderíamos enxergar precedências ainda mais claras, com maior ou menor grau de intensidade, em dois trabalhos inaugurais de Nelson Leirner: O Porco (1967) e Homenagem a Fontana (1967). Essas obras trazem para o rico cenário brasileiro dos anos 1960 questionamentos acerca do gosto do público, da fetichização da arte e da legitimação crítica do objeto de arte, e se apropriam do repertório de sua história e o justapõe ao da sociedade de consumo. Quando falamos de Leirner, devemos fazer uma pausa maior para mencionar a importância que o mestre teve na formação de Alexandre da Cunha, de quem foi professor na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado). “Nelson Leirner foi um artista fundamental na minha formação. Foi um dos poucos professores no Brasil que falou de arte comigo sem frescura, sem muito mistério—. No entanto, parece-me que o pensamento de Nelson Leirner está mais disposto a pensar novos paradigmas para arte, no sentido de questionar o sistema de arte como um todo, seu modus operandi e seus atores. Ao enviar um porco empalhado para um Salão de Arte e indagar a aceitação desta obra pelo júri marco da crítica institucional no Brasil —“ Leirner estava “empalhando porcos e desempalhando a arte”. Ao levar para museus e galerias objetos de arte construídos elegantemente com sucata industrial, dejetos e restos da sociedade de consumo, Da Cunha transporta para o espaço da arte fragmentos da crise do capitalismo industrial, da insustentabilidade dos recursos renováveis, que traz, como analogia, a crise do museu e do meio de arte como centro irradiador de um gosto superior. Para Da Cunha, trata-se mais de aplicar as regras de outros universos ao interior do regime de produção artística, sobretudo na sua pesquisa com apropriação, aludindo a outros sistemas (como o design, a decoração, as artes decorativas, a arquitetura popular, a gambiarra). Lendo a obra de Nelson Leirner por meio da obra de Alexandre da Cunha, percebemos como o grande artista paulista antecipou algumas inflexões da obra do discípulo.
As “pinturas” de Da Cunha feitas com lona de cadeira de praia e chassis de madeira —“ refiro-me aqui às Deck Paintings, iniciadas em 2004 —“ guardam uma relação muito interessante com duas séries de “pinturas” de Leirner. Ao apresentar a Homenagem a Fontana, na exposição “Da Produção em Massa de uma Pintura”, Leirner cruzou duas fontes: os quadros de Lucio Fontana e os tecidos e aviamentos industriais. Feitas também para dessacralizar a aura da pintura única —“ no sentido de que se colocavam como múltiplos que poderiam ser repetidos —“ as pinturas de Leirner investiam sobretudo na ironia. As Deck Paintings não podem ser repetidas (cada uma é única), mas podem ser feitas à exaustão (não se sabe até que número, mas talvez até por outras pessoas) e, citando abertamente a abstração, trazem uma certa alegria (e cinismo) a um repertório surrado; um pouco à maneira da série Construtivismo Rural (1999), de Leirner, que remetia ao cânone geométrico por meio de padrões de couro de vaca.
A tradição encetada por Carvalho-Leirner, para chegar em Da Cunha, poderia fazer paradas nos questionamentos dos meios de circulação que promove a obra de Cildo Meireles; passar pela pintura povera sobre suportes, encontrados de Celso Renato, para, então, chegar ao furor colecionista de Jac Leirner ou ao pop-cafona de Leda Catunda; ou, ainda mais recentemente, à pesquisa de Iran do Espírito Santo e Marepe. Resguardadas as profundas diferenças de temperamento artístico, está sempre presente, nestas obras, um questionamento poético sobre os materiais da arte e, de forma mais ampla, sobre seu lugar nas cadeias de consumo de imagens, valores e objetos.
Na obra de Alexandre da Cunha, o sentido é construído no embate com a experiência do espectador. E se a palavra —œlúdica” soa excessiva, a experiência com esses objetos é de fato divertida – sobretudo ao nos depararmos com seus engenhos e métodos no reprocessamento de nossas referências e desejos. No entanto, no afã da sua sedução, esses objetos parecem, eles mesmos, dar sempre a última risada.
* Alexandre da Cunha foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2006
Governo do Estado de SP