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Albano Afonso

Visitação

27/10/2004 a 12/12/2004

Na instalação criada pelo artista bastam presença e deslocamento para desestruturar toda a cena. O visitante está, a um só tempo, bloqueando parcialmente a visão da obra, integrando-se a ela e tornando-a visível para um segundo observador.

O corpo do espectador é invadido pelas árvores, ilumina-se e, ao mesmo tempo em que subtrai luz, joga sombras sobre a imagem do bosque de pinheiros que brilha ao fundo da sala escura. O visitante está, a um só tempo, bloqueando parcialmente a visão da obra, integrando-se a ela e tornando-a visível para um segundo observador. Na instalação criada por Albano Afonso para esta Temporada de Projetos, bastam presença e deslocamento para desestruturar toda a cena. 

Semelhante operação desestabilizadora, só que situada no universo bidimensional e valendo-se dos recursos próprios da pintura, pode ser percebida em Magritte. Le Blanc-Seing (Assinatura em Branco), de 1965, é obra que Albano assume como uma de suas principais referências para discutir representação, ilusão e verossimilhança. Na tela do pintor belga, vemos uma mulher cavalgando em uma floresta, seu corpo e o da montaria simultaneamente atravessando e sendo atravessados verticalmente pelas árvores (experiência análoga a que se submete o público no Paço das Artes). Toda a ambiguidade está baseada em uma particular subversão das regras da perspectiva, de maneira que fica impossível determinar a distância entre a figura central e a grade formada pelo bosque, em incessante movimento entre os planos anterior e posterior do quadro, aprisionando e libertando a cavaleira, aproximando-se e se afastando do espectador. Esta indiferenciada trama de pinheiros se coloca à frente não só para camuflar, mas também para iluminar os corpos. Assim como na instalação de Albano, o real depende de uma presença física para se revelar. 
Tanto a obra de Magritte quanto a de Albano parecem perguntar sobre uma certa natureza dos homens, das coisas e da arte: no sistema da representação, o que veio ao mundo para suprimir e o que possui a capacidade de tornar visível? Vale aqui estabelecer um paralelo com as pesquisas de Yves Klein, centradas nos embates presença-ausência, material-imaterial, especialmente as —œzonas de sensibilidade pictórica imaterial— na célebre mostra realizada em 1958, “O Vazio” (uma galeria pintada de branco, inteiramente vazia, que ele chamou uma “exposição de vacuidade”). 
A operação de mão-dupla que envolve subtração e adição de elementos – e que insere decididamente o espectador neste jogo, em que eliminar e acrescentar não são decisões excludentes – é ponto central em outras séries criadas por Albano, caso das imagens de paisagens perfuradas sobre espelhos (série Planos de Viagem) e de seus auto-retratos sobrepostos a auto-retratos de Dürer, Van Dyck, Rembrandt, Goya e Courbet, intersecção que cria um campo indeterminado no qual as identidades de Albano dialogam com as do pintor consagrado. 
Na técnica desenvolvida pelo artista, o reconhecimento de seu biótipo por parte do público fica comprometido devido a essa fusão (feita digitalmente, com base em um prisma, a partir dos olhos de ambos personagens). Este procedimento que busca articular negação da identidade pessoal e reafirmação da identidade artística (uma vez que as características físicas originais de Albano são mascaradas e restam a força e a sedução da obra por ele criada) já foi levado a cabo nas fotografias em que ele elimina seu próprio rosto com o disparo do flash (luz que a um só tempo revela e destrói a imagem), de novo urna evidente referência a Magritte, no caso a tela O Princípio do Prazer 
Um destes retratos perfurados – uma mistura entre o auto-retrato do pintor francês Alexandre-François Desportes (1661-1743) e o de Albano – recebe o público à entrada da exposição no Paço. Originalmente, o quadro de Desportes (Auto-Retrato de um Caçador, 1699) mostra o artista posando vitorioso, com um rifle à mão, após um bem sucedido dia de trabalho, animais mortos aos seus pés.
O tema clássico da caça (que pressupõe a morte) também se manifesta na projeção monumental no interior do espaço, baseada na floresta criada por Botticelli em História de Nastagio degli Onesti (Segundo Episódio), de 1483, pintura que narra o castigo eterno sofrido por um cavaleiro e sua amada – ela por ter se mostrado irredutível ao negar continuamente suas propostas de casamento, e ele por ter se suicidado por ela. Os deuses o condenam a caçá-Ia e entregar parte de seu corpo aos cães – para no dia seguinte recomeçar, indefinidamente. A ação é presenciada por um mortal, o cavaleiro Nastagio degli Onesti, que vagava miseravelmente por um bosque de pinheiros, amargando ele também o drama de sucessivas recusas por parte da mulher que amava. Contudo, ele consegue reverter a situação, ao relatar a ela a história. A dama, temendo destino semelhante, aceita o pedido de casamento. 
Esta fábula de amor foi representada por Botticelli em quatro grandes painéis horizontais. Albano Afonso, em mais um de seus mergulhos na história da arte (a nostalgia e o resgate de uma era perdida são temas que dariam margem a toda uma outra discussão centrada em sua obra), apropria-se do bosque de pinheiros presente no segundo destes painéis, criando a partir dele uma superfície dura perfurada – em papel fotográfico, um suporte por excelência – que, atravessada pela luz branca do projetor, reproduz a floresta na parede da sala. Em chave contemporânea, o artista dá continuidade e atualiza o embate entre realidade e ficção -material/imaterial, concreto/ilusório – presente nas telas do pintor florentino.
  Na projeção desenvolvida por Albano para o Paço das Artes, a mata se abre numa clareira e, onde originalmente se via o cavaleiro arrancando o coração e as entranhas da amada, impõe-se agora a luminosa presença do casal Adão e Eva, de mãos dadas, seus corpos unidos por centenas de fios elétricos (técnica já usada na série Pictogramas Iluminados), tematizando a história trágica original de separação e morte, simbolizada pela perda da eternidade, o atributo divino do casal no Paraíso. 
É interessante observar que, na contramão da corrida tecnológica que marca parte da produção artística atual, Albano criou seu casal bíblico de forma bastante precária, podemos dizer low-tech. Trata-se de lâmpadas baratas, de baixa voltagem, dessas que vemos por aí durante o Natal, mas que aqui funcionam para definir os contornos e emprestar carnalidade (e humanidade) às figuras de Adão e Eva. 
Tudo isso em detrimento das inúmeras ferramentas disponíveis para se atingir um resultado semelhante ou, até, mais eficiente – em mais uma decisão que reafirma a instabilidade desta obra, do mundo, do homem e das relações afetivas. Além da interdependência entre duas pessoas, a característica debilidade das ligações amorosas é reiterada pela construção do trabalho – por exemplo, pelo fato de o circuito de cada uma das centenas de lâmpadas funcionar em par: se uma delas queima em Adão, o mesmo acontece em Eva, simétrica e simultaneamente. Neste universo criado por Albano Afonso – sistema em que os símbolos da religiosidade não podem ser negados – a saturação de luz é responsável pelo sentido impalpável da cena, em conformidade com o brilho irreal e etéreo da floresta. 
Habitando ambiente tão improvável quanto o encontro de duas pessoas, o visitante se desloca lentamente, de maneira cuidadosa, espécie de cavaleiro perdido em um bosque, receoso ou do que pode encontrar, ou de destruir coisa por demais preciosa. Parece vagar à deriva, como se à procura de algo valioso que definitivamente perdera.
* Albano Afonso foi artista convidado para a Temporada de Projetos 2004
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