Arte e Cocaína, 1950-2000: uma sondagem

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13/03/2007 a 08/04/2007

Arte e Cocaína, 1950 —“ 2000: uma Sondagem apresenta 15 trabalhos confeccionados com lâmina de espelho e pó branco por artistas como Jimmie Durham e Sofia Hultén. A mostra remete à produção de arte realizada na segunda metade do século 20.

Um discurso que, não apenas pela insistência e a reiteração, mas especialmente por suas estratégias de convencimento, conseguiu se impor historicamente. Ao buscar um lugar no sistema da cultura, a arte contemporânea, incluindo seus processos e produtos, desenvolveu uma série de mecanismos de sustentação. Enquanto alguns deles se manifestaram de maneira ostensiva, no limite da arrogância, caso da arquitetura das galerias de arte, do design das exposições e da noção de curadoria, outros operaram de maneira sutil, quase subterrânea, nos desvãos, o lugar —œentre— uma coisa e outra. Por exemplo, toda a gama de materiais impressos que acompanham (ou melhor, se agarram) à existência de uma obra ou mostra: catálogos, folders, press-releases, textos de parede, pôsteres de divulgação, anúncios publicitários, o convite e, mais recentemente, o site da galeria e o site da mostra.É a este lugar intersticial que Alberto Simon está se dirigindo.Porém não apenas como uma mera crítica a ele, mas reconhecendo e se apropriando de suas mesmas técnicas de perpetuação —“ sejam elas legítimas, eficientes, desleais ou ingênuas. Arte e Cocaína, 1950-2000: uma Sondagem. Curadoria de Alberto Simon (2001-2003) é o que o artista brasileiro define como —œuma exibição temática ficcional—, mas é também um olhar informado em direção ao passado, e que assume como ponto de vista a posição em que nos encontramos hoje. A ação inicial de Simon foi disponibilizar para um grupo de artistas e não artistas, individualmente, um grande espelho e uma tigela contendo pó branco, para que eles usassem os materiais livremente, da maneira que bem entendessem. Todo o processo foi fotografado, bem como os produtos gerados pelos participantes do projeto.Essa matéria-prima visual serviu como base para que o artista criasse, digitalmente, as peças que integram a curadoria. Os trabalhos citam a iconografia, suportes e meios emblemáticos da produção contemporânea na segunda metade do século 20. Porém o olhar de Simon não recai sobre a nobreza da história da arte como esta chegou até nós. Não vemos nada da elegência do Minimalismo ou da seriedade da Povera. Arte e Cocaína é, também, uma crítica à falsa idéia de pureza e integridade estética, indo ao encontro de —œmovimentos— típicos —“ e tipificados —“ marcados pela derivação.O —œxerox do xerox do xerox…—, um dos temas e obsessões na produção de Alberto Simon. Suas curadoria resgata —œestilos— extremamente contaminados, diluídos, sem salvação para a história da arte. Caso de uma certa Claudette Moireaux, por exemplo, legítima representante do pop francês dos anos 1970, da qual vemos o pôster de sua individual no Palais de Beaux-Arts de Avignon, batizada Feu d—™Artifice. Há ainda uma instalação multimídia de Silvia Ocougne, chamada Projected Egg, e que lembra as reproduções em livro de situações instalativas realizadas há mais de três décadas. Arte e Cocaína inclui ainda uma videoperformance, batizada pela artista Sonja Salomon de My Dinner With Mark Rothko. No ensaio A Voyage on the North Sea – Art in the Age of Post-Medium Condition, a crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss discute o conceito de especificidade do meio e reflete sobre a —œatitutude desconstrutiva— de Marcel Broodthaers em relação à própria idéia de medium. Ela se refere, no caso, ao uso que o artista belga faz da fotografia: como uma forma que corrói e implode sua própria especificidade, ao levar a imagem visual a uma dependência da legenda escrita; e também como uma arma para atacar a idéia de especificidade em todas as artes. Uma outra série de Alberto Simon, presente nesta individual, confronta e leva adiante a proposta —œviral— e auto-destrutiva de Broodthaers (na qual o contexto é usado contra si próprio). Em áudio slide show LEGENDADO *, a corrosão se dá por meio de uma particular relação entre a imagem (fotografias) e o texto (representado pelas legendas). As legendas não estão ali para auxiliar no entendimento das fotos. Atuam mais no sentido de abrir caminho para relações de sentido abstratas, assumindo em alguns momentos a via do nonsense, e de mimetizar relações formais oferecidas pelas imagens.Longe de estabelecer relações de causa-efeito e percursos de pergunta-resposta entre a linguagem fotográfica e a textual, Simon situa o espectador em um jogo de múltiplos espelhos, um pouco à deriva nesta névoa espessa e labiríntica. E o artista, deliberadamente, não surge em meio à neblina para nos apontar uma direção, optando por oferecer, apenas, a possibilidade de múltiplos caminhos. Em algumas legendas, deparamos com um falso hermetismo que beira o ininteligível; em outras, temos o domínio da banalidade. áudio slide show LEGENDADO * opera, ainda, uma crítica, irônica e bem-humorada, a certas tendências na arte contemporânea deste século, como a de procurar a verdade em locais exóticos e longínquos. Em um dos textos da série, a legenda descreve: —œMãe Galo e seus 8ito galetos é o título de um Projeto de Arte que lida com temas aparentemente disparatados tais como Maternidade, Meio Ambiente e Minimalismo. Participantes convidados serão encorajados a desenvolver projetos em qualquer mídia e tendência, isto é alegórica ou analítica, digital ou analógica. Congregarão desde dezembro. Dispersão em fevereiro em cenário pitoresco tendo sido granja tendo sido adaptada alojamento à disposição cozinha comunal conveniências—.No caso de Simon, a obra assume como seu medium por excelência o próprio conceito de uma operação de curadoria, com todas as implicâncias artísticas, culturais e, particularmente, institucionais que ela carrega. Arte e Cocaína é um projeto que se volta para si ao se colocar a pergunta: o que é específico deste meio? De que é feita sua materialidade? De algumas idéias e insights, mas também, e especialmente, de toda uma estrutura no momento de apresentá-las, uma complexa gramática de exibição, que se apóia em elementos do design gráfico, da arquitetura, da lingüística, da retórica. Como se sabe, o ato de conceber uma curadoria passou a ser encarado, a partir de meados dos 1990, senão como uma —œobra—, pelo menos como um trabalho de cunho artístico. No sistema da arte, um projeto de exposição com determinado conceito, e que articule obras de artistas diversos, às vezes em perspectiva histórica, tornou-se também um produto —“ e que, como todo produto, pede uma embalagem. Ou melhor, duas: uma que opera in loco, que se traduz particularmente no design do espaço que vai receber esta demonstração de uma idéia, esta representação. A outra, talvez mais poderosa e eficiente, é aquela mencionada no início deste texto, e que atua no entorno, como mecanismo de sustentação teórica e histórica. Entre as curiosidades recentes no campo dos lançamentos internacionais, está o novo livro do curador globetrotter Hans-Ulrich Obrist, The Best Surprise is No Surprise, um ensaio teórico-visual baseado em uma compilação de anúncios eletrônicos veiculados pelo portal E-Flux. Trata-se de uma reflexão sobre o modo como a informação ligada a exposições, artistas, profissionais e mercado de arte é hoje veiculada. Para todos os objetos que se situam neste entorno, Rosalind Krauss adota o termo apparatus.No mesmo período em que Broodthaers trabalhava na concepção de seu Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, a dupla de artistas norte-americanos Mel Bochner (o criador de Working Drawings and Other Visible Things On Paper Not Necessarily Meant to be Viewed as Art) e Robert Smithson criava um trabalho histórico, emblemático do papel e do poder exercido por um dos elementos característicos do apparatus: o slide. Bochner (em texto para a Artforum de setembro de 2006) lembra de um encontro com seu parceiro Smithson, em meados dos anos 1960, em que eles discutiam maneiras de fazer com que os galeristas fossem até seus studios conhecer seus trabalhos. A frase que ouviam, invariavelmente, era: —œVocês poderiam me enviar alguns slides?—. —œComeçamos então a especular que—, escreve Bochner, —œse slides era tudo que as pessoas queriam ver, e que se eles já eram uma forma de reprodução, se havia de fato necessidade de realizar as obras—. Porque se preocupar com a produção, se o artista poderia ir direto para a reprodução?Levando adiante suas inquietações, a dupla decidiu criar um projeto extremamente original, que existiria apenas nas páginas de uma revista de arte (a Art Voices, no outono de 1966). Mas que, contudo, não se apresentaria como tal, e sim como uma reportagem sobre a reforma e modernização do planetário do Museu de História Natural de Nova York, estabelecendo assim uma relação entre arquitetura e historicidade. Tratava-se obviamente de uma operação de deslocamento profunda para o sistema da arte na época, mas também de uma crítica às regras do mercado: com a inserção The Domain of the Great Bear, Bochner-Smithson eliminaram a intermediação da galeria, e transformaram uma fonte secundária, as páginas de uma revista de arte, em um meio primário. É por esta via, da discussão da especificidade de um meio o qual não se apresenta originalmente como digno de sustentar a existência de um trabalho de arte, que caminha Simon. Por exemplo, quando ao citar explicitamente o design de revistas em preto-e-branco dos anos 1950, bem como seu texto subjetivo, lírico, superlativo e beletrista, na reprodução de uma crítica ao artista uruguaio Gastón Sposati, um dos selecionados para a curadoria de Arte e Cocaína (é importante notar que este estilo ainda se faz presente em parte da crítica feita no Brasil).Neste sentido, é possível retomar, à luz da obra de Simon, a afirmação de Walter Benjamin: —œO trabalho de arte reproduzido se torna um trabalho de arte projetado para a reprodutibilidade—. Os suportes escolhidos pelo artista para expor as obras de sua curadoria, todas elas imagens geradas em computador, vão desde o modelo convencional/tradicional do quadro emoldurado, até impressões (lambda prints) fixadas diretamente sobre a parede, passando por backlights e impressões sobre lona.Qual indício diz ao público que estas peças aqui expostas não são (não poderiam ser) obras de arte produzidas nos anos 1950 ou 1960? O meio, justamente, pois é evidente que naquelas décadas não existia ainda a impressão digital nos moldes como a conhecemos hoje. Qual então sua especificidade como meio (ou, como perguntaria Benjamin, onde está sua —œaura—)? Esta é uma pergunta incontornável, uma vez que não estamos diante nem de uma pintura, de uma fotografia ou de um vídeo. Muito menos —“ sendo esta uma das armadilhas de Arte e Cocaína —“ de reproduções que citam estes suportes.O seu meio seria, ainda, a ficção, no mesmo sentido que o era para Broodthaers (ao dizer que seu Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias era —œuma ficção—), e para artistas que criaram uma persona ficcional para si mesmos, caso de Bas Jan Ader (que em 1975, com 33 anos de idade, encenou o próprio desaparecimento em um veleiro, à maneira de um herói dos mares, e que de fato nunca mais foi encontrado) e Maurizio Cattelan (que assumiu o papel de galerista com sua The Wrong Gallery, e de curador da 4ª Bienal de Berlim, Of Mice and Man, 2006). Da mesma forma que, na literatura, escritores como Enrique Villa-Matas, Roberto Bolaño, Philip Roth e Bruce Chatwin se colocam diante do —œestado ficcional—. Não no sentido de confundir suas vidas pessoais com seus romances (o que seria grosseiro demais), mas no de instituir, dentro da própria narrativa, uma ambiência de dúvida e desconforto, um lugar de questionamento sistemático da própria estrutura ficcional e dos truques que a mantêm em pé.

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