Novidades revistas

Visitação

24/11/2002 a 22/12/2002

A trajetória artística da arista é caracterizada por intervenções no espaço acompanhadas por performances que promovem um confronto direto com o espectador. Muitas vezes estes trabalhos são realizados em espaços públicos.

Ao procurar um viés de leitura para essas três séries de obras recentes de Fabiana de Barros, uma questão possível recai sobre a maneira como se vincula um percurso artístico especialmente voltado para a intervenção e performance a trabalhos condicionados à densidade do espaço expositivo tradicional e que por isso têm de condensar propriedades dinâmicas na sincronia de um suporte bem mais estável. De outro modo, mesmo que se vá falar de criações em modalidades como o foto e instalação, persiste a vivência precedente que, neste caso, não se pode nem resgatar em palavras, nem negligenciar, porque dizem muito sobre uma poética fiel ao percurso como reflexão do próprio tempo na obra. 
Uma declaração feita por Geraldo de Barros em filme sobre sua obra dirigido por Michel Favre, cuja colaboração e co-autoria foi decisiva em alguns trabalhos aqui discutidos, pode ser uma chave de entendimento: —œA Fotografia é de quem a realiza e não de quem expôs o negativo”. 
Não é preciso discutir as implicações dessa concepção na obra deste que foi dos artistas brasileiros que mais profundamente questionou, no século 20, a essência da imagem. É inevitável, porém, notar que o que disse sobre a fotografia, perpassando sutilmente o dilema da questão técnica, posiciona, em um segundo momento, a questão autoral em definitiva engrenagem com o tempo. 
Esse espaço contido entre duas extremidades de um ato estético é crucial: a alteridade se infiltra na duração desse feito por projetos que dão vazão ao imprevisível, das confirmações de um cromatismo festivo à erosão incômoda do que, antes, era vida, fato real e agora se fixa como uma obra no instante da imagem. Cada foto é capaz de ressemantizar pela “realização” do artista todos os eventos pregressos que transbordariam num percurso como o de Fabiana. Nas palavras da artista: “Certos temas específicos ao meu trabalho permanecem em todas as minhas obras. O próprio tempo de elaboração faz parte do conceito. Na passagem da pintura à performance, eu me dirijo ao outro. Em direção àquilo com que o outro pode me interpelar”. 
Ou seja, a silhueta sintética e de aparência contraditoriamente vazia que marca cada uma das revistas da série “Novidades Revistas” (2002), esconde o rastro de outras ações reveladas por esse último autor, agente catalisador em um processo permeável ao coletivo. Forma-se essa espécie de rio de figuras humanas que estampam uma depuração pela qual restaria apenas a “alma da imagem”. O quanto permanecem suscetíveis a leituras múltiplas, ainda, advém desse “esvaziado”, emblema do movimento extinto num jogo lembrando a imagem de FoucauIt para a obra de Raymond Roussel: “somente se podem balizá-Ias pelo que elas não são” (sic). 
A graça bem calculada frui por entre estruturas canônicas. Nega-se um certo dogmatismo já datado, que propõe um paradigma para esses signos. Comunicariam a todos de modo inequívoco, à custa de não poder ser nada além daquele código, a serviço de uma objetividade dada como certa. Imagina-se que isso seja, de algum modo, parodiado. Diferentemente, as reações previstas são incalculáveis, de uma diversidade incompatível com o discurso científico. É o que se pretenderia provar num percurso inverso – das imagens à performance – em uma ação ainda não realizada denominada “AUTO PSI”. Passageiros de táxi são submetidos a uma “fantasia consciente induzida” através da apreciação de lâminas temáticas onde figuram quadros do Teste de Apercepção Temática (TAT); podem ser lidas, por exemplo, como cenas de mágica, circenses: um homem hipnotiza uma mulher que parece estar dormindo … Seria, assim, uma investigação que tem como pressuposto a reflexão artística, apesar de estar camuflada em discurso científico como o trecho de Barnett Newman: “Sem dúvida o primeiro homem era um artista. Uma ciência da paleontologia fundamentada nessa afirmação poderia ser formulada se partisse do postulado de que o ato estético sempre antecedeu o ato social”. 
Confia-se no signo como meio de deslocamento e transformação. A convergência temporal mencionada como que sobrepõe um espírito cosmopolita, liberdade de nômade, à consumação descontrolada de um código em um contexto local específico. Joga-se luz através de rituais “domésticos” nas tonalidades mais sombrias, que acabaram por tingir muitas ideias de um trabalho voltado para a questão pública. 
A metáfora clara de uma resistência incandescente nas diversas configurações de “Queimaduras” (1997) traz não só a ironia do que é inapropriadamente retirado do contexto utilitário – a resistência do chuveiro elétrico ou das torradeiras – para configurar slogans e signos de uma vida contemporânea. Traz uma fragilidade de algo que não é frio, mas aparece pouco como se estivesse engendrado nas máquinas em forma de coisas e gestos já obsoletos. Em pouco tempo aquilo estoura de uma vez e essa conjunção estranha de visualidade com impressão tátil do que queima realmente, desaparece. 
A série de emblemas e a própria conformação lúdica de cada um deles também indica um direcionamento para algo não programado, mas que, novamente, se fixa. Não há certeza, há uma afirmação: linhas que queimam, o desenho positivo sobre o fundo negro, abissal, numa relação que evoca estrema instabilidade, eleva a atividade de ser “fazer” signos, coisa primária, ao patamar de uma prática em extinção, heroico, consciente de que o lúdico não descarta a vulnerabilidade e sabe que o jogo também é feito de perdas. 
Em “D’Apres” a síntese é literal e o sentido do provisório chega a ser nostálgico. Elaboradas a partir de registros de outra ação da artista, “Fiteiro Cultural” (1998-2002), força uma diacronia que deixa o espectador num impasse do tragicômico. Em uma das imagens pouco se vê. A intervenção na fotografia, uma dentre as dezoito expostas, lava todas as figuras e transforma o plano em uma imagem remota, perdida diante de sua presença plástica atraente. A mesma através da qual se ilude o espectador ao fotografar a matéria pictórica ainda molhada e grossa. 
A pintura virtualizada equiparada-se a uma negação parcial da fotografia. No mesmo plano estão a imagem real e a intervenção do artista, expressiva, se não aludisse mais uma vez ao que é passível de ser feito por muitos ou por qualquer um que tenha acesso ao material plástico utilizado. Podem ser aleatórias ou desarticulações sutis. 
Mimetizando, por vezes, essa interferência coletiva sobre a imagem indicial de uma ação pública mostra-se que a própria substancia do trabalho só se “realiza” mediante a presença e participação do espectador. É uma relação inquietante com uma foto: lúdica na aplicação, mas um pouco trágica por lembrar da extinção de uma coisa em outra. 
* Fabiana de Barros foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2002
Governo do Estado de SP