Tomie Ohtake

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29/09/2000 a 05/11/2000

A poética dessa obra da artista ocorre pela transmigração qualitativa de gestos: riscar, distorcer e mexer. Nesse processo emergem suas relações com a experiência neoconcretista. O gesto foi inicialmente desenho na etapa da formulação do círculo e demarcam e conferem coesão ao plano vazio.

O espaço é um campo de instabilidade em busca de repouso. Talvez como um mar agitado de Hokusai. Ou como a turbulência discreta das pinceladas curvas da pintura atual de Ohtake. O espaço, nesta obra do Paço, está povoado por grandes círculos brancos de metal. Os círculos se alçam à altura dos olhos e, em dados pontos, tocam o chão. São doze aros tortos, afligidos por uma deformação topológica que parece feita a mão pela artista. São aros que balançam, obedecendo ao toque do espectador. Só um investimento de desejo e energia pelo sujeito pode produzir seu movimento. O círculo, depois de tocado pelo espectador, busca a retomada do equilíbrio, um novo repouso que o livre da arritmia de movimentos do conjunto. É necessário compreender aqui, desde o início, a precisa simbologia do círculo. Brinker ensina que o Zen parece ter desenvolvido um princípio de ensinamento baseado em camadas simbólicas do círculo. O círculo é “símbolo do espírito absoluto, como plenitude, como vazio do universo que a tudo envolve, e como multiplicidade e oposição em sua duração, como essência búdica, transcende, fora do espaço e do tempo” (1).
A poética dessa obra de Tomie Ohtake ocorre pela transmigração qualitativa de gestos: riscar, distorcer e mexer. Nesse processo emergem suas relações com a experiência neoconcretista. O gesto foi inicialmente desenho na etapa da formulação do círculo. Apesar de sua estrutura tubular, as peças funcionam como linhas que demarcam e conferem coesão ao plano vazio. Na obra inicial de Franz Weissmann, em seu período concretista, fios de metal desenham cubos no espaço, como os sólidos vazios de suas Esculturas Lineares (1954). Portanto, os círculos da obra de Ohtake são, operacionalmente, linhas. 
Os doze aros brancos do Paço são da família dos planos espessos da pintura de Lygia Clark, nos quais se sulcava a linha orgânica. Também têm algo do ato escultórico de Amilcar de Castro. Na gênese de sua escultura, Castro corta e dobra o plano de aço. Assim nasce sua escultura. Já Ohtake, ao deformar a linha (tubo de metal), que conforma o plano vazio, converte os círculos (desenho) em escultura. Aqui, essa obra de Ohtake deve ser remetida a dada obra de Cildo Meireles, que amassa o desenho de um círculo na forma de uma bola, produzindo um sólido. Ã‰ sua obra A diferença entre o círculo e a esfera é o peso. A operação de Meireles, tanto quanto a de Ohtake, resulta numa espécie de toque no círculo. Historicamente, Kandinsky havia tratado do círculo como um dos planos originários, ao lado do triângulo e do retângulo. Anotava que o círculo é um plano sem ponto de partida, sendo concêntrico, sua tensão é auto-centrada (2). A deformação produzida por Ohtake provém qualitativamente de uma situação análoga, criada numa tela redonda por Hércules Barsotti. Toda a periferia do círculo branco, pintada de preto, se deforma no plano da percepção visual. Esse pintor trabalha com a percepção de espaços de luz e espaços negativos de escuridão, operando jogos neoconcretos de percepção da forma. A instabilidade na instalação tem o mesmo caráter de desconstrução do equilíbrio. Na obra de Ohtake interessa mais o tempo do processo de construção da estabilidade, mais que a estabilidade mesma. O gesto deformador de Ohtake sobre os aros coloca em pane o círculo enquanto ideia de centro auto-referenciado. 
No Neoconcretismo, a pintura Ovo linear de Lygia Clark é circular, uma espécie de pintura em tondo onde se materializa o pensamento visual desta artista (3). O Ovo é círculo, que é forma que remete ao tempo, que é criação do homem. Corte ou ovo esférico, a obra é o tempo do mundo. No entanto, a circularidade do tempo sofre, sob nosso olhar, uma ruptura sutilmente traumática na obra de Clark (a ruptura da linha-luz) e Ohtake (o toque do espectador que perturba o repouso do aro). Assim, ambas artistas apontam para o tempo da descontinuidade. 
A proliferação dos aros deformados, agora doze, surpreende com a conversão do conjunto em algo que é mais que a soma de seus elementos. O conjunto se impõe como —¨algo inteiramente novo, mediante a transformação qualitativa do espaço. É a emergência da instalação. O novo território instala o espectador em seu centro. Na Unidade (Ovo), Lygia —¨Clark confrontava equilíbrio e ruptura com a linha-luz periférica do círculo preto. O fato determinante da tensão, no caso da obra de Tomie Ohtake, é ativação da linha-aro que, deformada, transforma o “desenho” em espaço de instalação, que finalmente será habitado pelo espectador. 
A escultura propõe um corpo a corpo do espectador com outro corpo, o aro (4). Agora, o conjunto de doze aros deformados passa a requerer o tato sob uma outra ordem. O lugar entre aros, ou o entrar no vazio do círculo, é uma metáfora da penetração do olhar no vazio das transparências e nas profundidades virtuais da pintura de Tomie. O toque do espectador determinará um movimento do aro. Mário Schemberg fala da “rotação indefinida do círculo” (5), para indicar uma dinâmica, uma espécie de inquietude intrínseca ao círculo, que Ohtake reinventa em outro modo e mecanismo. O toque nos círculos detona a “transiência”, movimento e dispêndio de energia. Movimentado o conjunto de aros, todo o espaço da instalação será um território de instabilidade. O lugar do olhar é o lugar de exploração da dinâmica do mundo. É possível agora habitar o conceito do ukiyo-ê como imagem do mundo que passa. Porque Kandinsky diz, ademais, ser o círculo tão instável quanto estável (6). É assim que Ohtake permite a opção e o investimento de desejo. Na obra de Tomie Ohtake – ainda sobre aquele tema de Kandinsky – os círculos recuperam uma relação com a gravidade perdida. Ocupando o centro do fato plástico dinâmico, o espectador compreende que a física determina que o destino desse campo é o repouso. 
Notas: 
(1) BRINKER, Helmut. O zen na arte da pintura. São Paulo: Pensamento, 1985. p. 31. 
(2) DENOEL/GONTHIER, Cours du Bauhaus. Paris, 1975. p. 102. 
(3) “Olhando-se para um círculo quase completo dentro da superfície de um espaço representativo, tendemos —¨a fechar o círculo visualmente (Lei de Gestalt). Quando temos um círculo quase completo, contornado pela —¨linha-luz bi espaço real, o círculo tende a não se fechar para nós, porque as extremidades da linha-luz, —¨perceptivamente, distorcem a superfície do círculo”. CLARK, Lygia. Livro-obra. Rio de Janeiro, 1983.
 
(4) Tomie Ohtake se dedica com muita frequência à escultura, com especial atenção para a escultura em espaço —¨público. 
(5) Em 1964, Mário Schemberg trata da relação das monotipias com os hai-kais de Banshô e Ma Yuan, tratando-as —¨como fruto caligráfico temporal e seu interesse em Zen. “Conseguiu se liberar de muitas concepções —¨arraigadas na arte ocidental tradicional e ainda atuando fortemente na arte contemporânea”. Ver SCHENDEL, —¨Mira. Monotipias. In: SCHEMBERG, Mário. Pensando a arte. São Paulo: Nova Stella, 1988, p. 24. 
(6) Idem, ibidem. p. 103. 
* Tomie Ohtake foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2000
Governo do Estado de SP