Sussurra para que eu escute

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02/04/2019 a 09/06/2019

“Sussurra para que eu escute”, de Manuel Carvalho, expõe trabalhos da série “Anacoluto”, que o artista desenvolve desde 2014, e em que explora as possibilidades de composição através da sobreposição de camadas de pintura

“Sussurra para que eu escute”, de Manuel Carvalho, expõe trabalhos da série “Anacoluto”, que o artista desenvolve desde 2014, e em que explora as possibilidades de composição através da sobreposição de camadas de pintura

Abaixo, a entrevista de Manuel Carvalho para o crítico Claudinei Roberto sobre a mostra “Sussurra para que eu escute”.
Preâmbulo necessário. Criado em 1970, o Paço das Artes é uma instituição cultural vinculada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo: o Paço existe, portanto, há 49 anos. Longevidade invulgar quando consideramos o descaso histórico geralmente dispensado à cultura do país. Descaso, aliás, já denunciado em pronunciamento por Mário de Andrade em 1936: Mário de Andrade que, entre tantas atividades, foi o primeiro secretário do então chamado Departamento de Cultura do Município de São Paulo em 1935. A Temporada de Projetos do Paço das Artes é justamente uma de suas iniciativas mais duradouras, inaugurada em 1996. O fôlego e a vocação do programa, aliados à renitente escassez de oportunidades oferecidas aos jovens artistas vêm sedimentando gradativamente a importância desse projeto junto à comunidade artística contemporânea no país e mesmo fora dele. Essa capilaridade e abrangência que transcende as fronteiras do Estado foram beneficiadas, ou mesmo tornou-se possível, também graças ao surgimento e avanços dos meios eletrônicos de comunicação, que desobstruíram o acesso à informação e assim contribuem para democratizar ainda mais a Temporada, franqueando o contato com portfólios e históricos de artistas de outros centros. Deste modo, as ideias em torno da descolonização de olhares, descentralização de produção artística e do policentrismo cultural — demandas urgentes próprias desse momento — são, num certo sentido, contempladas. Num acordo entre artista e crítico, com a anuência do Paço das Artes, a “entrevista” que segue foi realizada a partir de uma troca de e-mails e videoconferência através dos quais se buscou os meios de tangenciar a experiência do artista, seus percursos e resultados expostos nesses “Anacolutos”.
Claudinei Roberto: Manuel Carvalho nasceu em 1981, em Lavras, no interior do estado de Minas Gerais, frequentou a Escola Guignard (UEMG) entre os anos de 2002 a 2006. Vive e trabalha em Belo Horizonte, capital do estado. É verdade que elementos da biografia nem sempre são determinantes na constituição de uma obra, já que não existe certeza de uma relação de causa e efeito da vida sobre aquela; contudo, essa experiência do artista pode deixar de marcá-lo, como veremos, e ele não esteve indiferente às tragédias que ultimamente se abateram sobre o estado, em Mariana e Brumadinho, “desastres” sobre os quais depôs.
Manuel Carvalho: Pois é muita tristeza, pavor e agora um sentimento de frustração. Uma amiga que trabalha em Inhotim fica me atualizando, ela está junto do pessoal lá. Não sei nem o que dizer, a todo o momento fico pensando nisso tudo.
CR: Durante a conversa que mantivemos pela troca de e-mails e na conferência realizada por vídeo a partir das dependências do Paço das Artes, no MIS-SP, evidenciou-se o impacto que a paisagem física e humana de Minas Gerais, em geral, e de Lavras e Belo Horizonte, em particular, tem sobre a sensibilidade do artista e sobre o processo de maturação do seu trabalho e do resultado dele decorrente: sua pintura. A questão, afinal, relevante, evidencia também a importância da contemplação de cenários outros que não os já hegemonicamente conhecidos do nosso imaginário cultural. De fato, Manuel Carvalho foi pródigo na descrição de uma paisagem que “confina o olhar” ao negar-lhe as amplidões dos oceanos, reforçando, desse modo, certo caráter introspectivo e contemplativo geralmente atribuído aos habitantes dessa região do país. E nisso Manuel se assemelha ao poeta Carlos Drummond de Andrade, sua “Itabira”, e a João Guimarães Rosa e seus “Sertões”. 
Assim, as “neblinas e nevoeiros” da sua cidade natal, Lavras, incitam, no seu dizer, ao “isolamento” e “silêncio”, matérias e atributos necessários da sua situação de pintor. Fazem parte da sua rotina as “caminhadas contemplativas” regularmente empreendidas entre uma sessão e outra de trabalho, essas caminhadas não se constituem “descansos”, mas, pelo contrário, é um mergulho para dentro da sua subjetividade.
Pensando no que até aqui vi da sua pintura, inferi um pensamento em torno dos ideais estéticos do barroco peculiar no Brasil e da arte colonial e de procedimentos que contemporaneamente partilham dessa sensibilidade. Você acha que isso faz sentido? Essa intuição é correta? Não quero confiná-lo nem associá-lo a ela por conta de sua origem mineira, absolutamente, mas uma disposição sensível dessa ordem pode determinar a adoção de procedimentos que terminariam por definir a maneira como, incipientemente penso, você vai construindo o espaço pictórico e a imagem que nele se constitui. A sinuosidade, a linha serpentina e as camadas de tinta sobrepostas interferindo na construção da cor, os vários elementos que, combinados, resultam em trama complexa explícita na superfície de suas telas. Acúmulo, adição, pelo que percebi, do que vi, sua pintura é um bocado exigente, parece que houve/há um dispêndio considerável de energia, intelectual e física, para chegar a esse resultado, não é? Ainda tento penetrar no sentido do título “Anacoluto”.
MC: Sobre o barroco, creio que sim, que existe uma sensibilidade barroca, mas creio também que se relaciona com uma “pintura de método”. Acho que existe um degradê gigantesco entre esses dois acontecimentos na pintura, o que me instiga muito. Tenho uma tendência: quando começo um processo novo, uma experiência nova, acabo  usando cores vivas e o máximo de “interferências”, como se quisesse potencializar o que estou investigando e também para facilitar visualizar as possibilidades de desdobramentos, depois vou “limpando”, sintetizando e experimentando harmonizações de cores mais sutis.As imagens que utilizei para realização do projeto são do Arquivo Mineiro, e em uma das camadas (de uma das pinturas) existe uma imagem de uma pintura de um  pintor barroco, como referência, meu xará Manuel Ataíde.
Sobre o título, tenho uma história: quando estava na Escola Guignard frequentando o curso de artes plásticas, apresentando um trabalho na matéria de Teoria da Forma com a professora Sonia Laboriau, ela me disse que eu falava “utilizando muito de anacolutos”, que meus pensamentos não eram finalizados antes de começarem outros, que tinha o “pensamento desviante”. Fui ver o sentido e acabei relacionando isso com as camadas, o que pode ser mais claro em relação do título com as primeiras pinturas da série. Agora já não sei mais. Ando pensando em mudar isso tudo e deixar tudo sem título* e não organizar mais, como no meu site, os trabalhos em série… Mas não sei ainda, o que acha? Ainda sobre o título “Anacoluto” ele veio em oposição à outra série que faço chamada “Empate”, onde creio que existe uma relação maior com os processos e operações utilizadas no barroco. Ambas as séries começam com a ideia de harmonizar figuração e abstração. Em “Empate” é mais óbvio a orquestração e a maneira de articular as formas no espaço, a composição acontece de maneira “construtiva” no sentido de colocar uma forma e equilibrar com outra no plano e aí começa todo um jogo em que, no final, tudo me parece meio suspenso sem muita hierarquização. Já na série “Anacoluto” a composição acontece por camadas ocupando o plano como um todo, faço dezenas de esboços de testes de cores antes de começar toda a pintura.
CR: Durante nossa conferência eletrônica, Manuel de Carvalho confessou algumas influências, visuais e literárias, dada a espessura poética dos trabalhos que apresenta. Nessa série, era de se imaginar que fossem muitas essas influências que vão desde Guignard, Rembrandt, Picasso e Matisse até a Op Art. Comparecem entre suas preferências a incontornável presença da poesia de Fernando Pessoa e da prosa dadaísta de Alfred Jarry. Este dado é relevante, pois sua pintura transita entre o figurativo e o abstrato, como se pretendesse traçar uma ponte entre a objetividade da prosa e a subjetividade da poesia. Mas, nessa operação, Manuel talvez torne obsoleta essa dicotomia. Uma vez que os retratos de anônimos prospectados em arquivos fotográficos não constituem um “assunto”, mas sim um veículo a partir do qual o artista elabora o espaço que surge por meio de camadas, criando uma materialidade peculiar pelo espessamento da tinta, espessamento que vai, ele também, interferir na qualidade das cores que vibram a partir daí, num resultado quase cinético.
MC: Antes eu utilizava, em cima da figura, camadas de abstração, agora são figuras em cima de figura e abstração no meio disso tudo. Não tem mais uma ordem interna, mas creio que essas novas pinturas chegarão a campos de cores mais monocromáticos e talvez com interferências menos caóticas. Então suponho que as referências imagéticas e conceituais do meu trabalho acontecem em um degradê de oposições: do cheio ao vazio, da fragmentação à unidade, entre outros. Sobre as figuras, fui convidado a participar de uma publicação do Museu Mineiro, sendo que nessa publicação os artistas teriam que fazer uso das imagens de arquivos do próprio museu. Desde então, só utilizo essas imagens. Tem um trabalho que dá para visualizar mais meu pensamento sobre esse arquivo de forma mais narrativa, e como o sentido dessas imagens vão mudando com a repetição delas nas outras pinturas.
CR: O método aplicado sugere que os desdobramentos e possibilidades de investigação formal se desdobram numa espécie de espiral ascendente, que a operação realizada tem consequências não exatamente previstas e que justamente isso torna singular e potente o processo, permitindo-nos especular sobre, numa lógica quase cibernética de informações que se retroalimentam.
MC: Existem infinitas possibilidades de modificação de formas e cores, por exemplo, se eu aumentar o tamanho e espaçamento entre os pontos da última camada começam a surgir acumulações de radiais do moiré. Enfim, existem três variáveis (camadas) neste caso, e infinitas possibilidades de combinações, e o sentido dessas imagens vai mudando com a repetição delas nas outras pinturas. O engraçado disso tudo é que agora o processo abriu novamente e comecei a experimentar outras coisas. Como falei, tudo começa cheio e com cores mais saturadas.
CR: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa elabora, no poema “Tabacaria”, ao qual o verso citado pertence, um sentido muito contemporâneo de desconforto e perplexidade diante da vida, um assombro que, nascendo no cotidiano, transcende-o. “Que sei eu do que serei?” também parece ser a pergunta que Carvalho faz à sua pintura no ato de realizá-la. 
*O título da exposição, anteriormente batizado de “Anacoluto: uma situação pictórica” foi alterado pelo artista Manuel Carvalho para Sussurra para que eu escute. A mostra faz parte da série “Anacolutos”, que é desenvolvida pelo artista desde 2014.
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