FÍSICO | DUDU TSUDA | PAÇO DAS ARTES | JUN, 2020 #paçoemtodolugar

FÍSICO | DUDU TSUDA | PAÇO DAS ARTES | JUN, 2020

Juliana Caffé: Em Físico você compõe uma paisagem sonora que cria atmosfera e provoca os sentidos. A obra fala de medo e insegurança, como surgiu o seu interesse de trabalhar essas sensações?

Dudu Tsuda: Este interesse surgiu do meu desejo em realizar um trabalho sonoro que traduzisse, sensorialmente e não simbolicamente, as sensações de medo, incerteza e insegurança, com as quais eu vinha lidando a partir das minhas inquietações políticas, entre os anos de 2013 e 2019. Queria despertar essas sensações nas pessoas apenas com sons abstratos, cujas qualidades proporcionassem e conduzissem por si este complexo jogo de afecções. Me interessa não recorrer ao verbo e às imagens sonoras indiciais como formas de representar essas sensações, mas criar essas sensações como gradientes de intensidade qualitativos das sonoridades propostas, quer sejam elas produzidas pelas chapas metálicas, pelos sintetizadores ou pelos áudios captados. Não criar um som do medo ou proporcionar medo por sons que remetam às imagens sonoras cinematográficas de filmes de suspense: mas lidar com a sensação como uma qualidade intrínseca ao som, tal qual a cor e o brilho do timbre, por exemplo. Neste sentido, não me interessa representar simbolicamente estas sensações, mas fazer elas serem encarnadas pelas pessoas, profundamente e sem um direcionamento específico. Como ondas que ressoam e reverberam os próprios medos, inseguranças e incertezas que aquelas pessoas estão vivenciando agora. 

JC: Trabalhar essas sensações enquanto qualidades sonoras seria, então, uma forma de provocar estados emocionais em você e no público? No caso de Físico, relacionados ao crítico momento político brasileiro?

DT: Sim, e em duas maneiras distintas. No meu estado corporal e mental no instante em que estou performando, e nas afecções proporcionadas aos espectadores. Entendo tais momentos como distintos, pois em qualquer performance provocamos afecções e sensações no público, mas nem sempre estamos as encarnando. Neste trabalho, proponho uma experiência de intensidade gradativa e compartilhada, em que vou progressivamente me envolvendo e envolvendo o público neste estado de leve tensão provocado pela grafia dos sons. Duracionais, aparentemente contínuos, mas com curvas de alteração sutis, a partir de sugestões de acontecimentos que nunca se concluem. Como que um transe coletivo, de cumplicidade e cooptação de estados sensoriais, trazendo a discussão sobre a violência de Estado para uma experiência sensível. Me interessa esse confronto com nossas próprias sombras e pesadelos, nossos micro fascismos, nossos autoritarismos. Como formas de tangibilizar nossa parcela de responsabilidade nisso tudo, por um lado. Mas como uma abertura para libertação e superação também. Como arte educador, acredito profundamente numa emancipação através do sensível. E não há melhor maneira de alcançá-la senão pela experiência. 

JC: Podemos dizer que a sua curiosidade como artista se volta para a relação do som com questões sensíveis do ser humano, como emoções e sentimentos? Seria isso?

DT: Sim, no início esta questão era mais auto-referencial em meus trabalhos, muito em função de minha origem na música. Sou muito sensível aos sons, seja pelas suas qualidades ou aspectos simbólicos que eles trazem, e isso se reflete nos meus trabalhos. Agora, depois de anos trabalhando isso na minha esfera, consigo abrir meu trabalho pro coletivo, e a partir de mim, consigo afetar outros.

JC: Há três conceitos que você menciona que são importantes no seu processo artístico, a suspensão temporal, o silêncio e o termo cultural japonês ‘Ma’. Como você os compreende?

DT: Tais pesquisas são centrais em meus trabalhos e foram sendo desenvolvidas e operacionadas poeticamente em meus processos criativos desde 2013, seja em performances, instalações ou intervenções urbanas. Um conceito está associado ao outro. Em minha pesquisa, o conceito de silêncio que adoto é muito próximo ao conceito cageano, que estipula, em linhas gerais, que silêncio é tudo que nos entorna e que não controlamos. Uma perspectiva oriental contemplativa dos sons, em contraponto a noção ocidental cartesiana de ausência de informação. Suspensão temporal é um desdobramento deste conceito, uma sensação que pode ser causada de diversas formas, seja por uma expectativa de acontecimento, seja por uma sensação de estaticidade do tempo. Pode ser atingida por mim e/ou proporcionada ao público. Eu diferencio essas perspectivas, pois são situações que engendram resultados muito diferentes. Estando ou não nesse estado, posso produzir essa sensação no público através de uma composição, criada com tensões harmônicas ou proposições timbrísticas, ou ainda a justaposição das duas coisas. Posso também acessar a sensação como um processo contemplativo e meditativo na realização de uma ação. Já o termo cultural japonês ‘Ma’, é explorado enquanto uma espaço-temporalidade, a partir de sua essência duracional e imanente, apenas reconhecível e perceptível em sua presentificação. A sensação de tempo suspenso, por exemplo, é um tipo de espaço temporalidade Ma. Pode ser lida como um devir, um ‘vir a ser sendo’ relativo aos aspectos ontológicos da presentificação poética em questão. No caso da performance Físico, estes aspectos seriam a tensão provocada pela expectativa de acontecimento no encadeamento de elementos sonoros, uma constante sensação de desequilíbro, que se estabiliza na medida em que se desestabiliza, nunca chegando numa situação de repouso; pelo contrário, numa eterna transição, linha de fuga, vislumbramento de um ponto de chegada que nunca existiu e que nunca vai existir.

JC: Você poderia dar alguns exemplos de como o termo cultural japonês ‘Ma’ se manifesta na cultura oriental?

DT: Segundo a pesquisadora Michiko Okano, ‘Ma’ apresenta um “entre” de onde e quando acontece o processo de comunicação, um quase-signo (conceito da semiótica peirceana), reconhecível somente por meio de sua concretização em suas manifestações como espacialidade. Suas manifestações na cultura japonesa se diversificam amplamente, sendo suas presentificações na dança, na arquitetura, no cinema e na música, as mais difundidas no ocidente. Posso citar o arquiteto Kengo Kuma, por exemplo, ele é quem assina o prédio da Japan House em São Paulo. Ou o músico Ryuichi Sakamoto, em especial suas performances com o músico e artista visual Alva Noto. Os filmes do diretor Hayao Miyazaki e a dança de Kazuo Ono. Em cada um desses casos, a espaço temporalidade se manifesta em relação a um aspecto específico, sempre de modo sensível, por isso é tão difícil explicá-lo em palavras. Sensação de tempo suspenso, silêncio, espaço entre, intervalos, duração do acontecimento, para enumerar algumas dessas multiplicidades. Como explicar a um ocidental algo que tem uma multiplicidade quase infinita de facetas? Não à toa, meu interesse pela filosofia deleuzeana, e sua compreensão da realidade em mil platôs.

JC: Como você articula esses três elementos – o silêncio, a suspensão temporal e o termo cultural japonês ‘Ma’ – em relação às sensações que você explora na performance?

DT: Encadeio as sensações de medo, insegurança e incerteza como qualidades intrínsecas a esta fluidez sonora, num ambiente duracional, em que as distinções entre a temporalidade e a espacialidade das sensações, ali encarnadas e emanadas, são borradas se tornando uma só experiência. Num só fluxo. Exploro esses blocos de sensações como durações agóricas, no sentido de uma ação que está acontecendo neste instante e a cada instante, na ponta da flecha do tempo presente, numa temporalidade outra, não cronológica e racional. No infinitivo: ser medo, incerteza, insegurança, suspensão temporal e silêncio; encarnar e atingir ao público tal como me atinge. A agoridade que nos fala Heidegger, o agora como verbo, o ser como verbo: ‘eu sou’ já é uma representação de si, uma imagem de si; ‘ser sendo’, uma intersecção entre existência e tempo, e mais uma vez, não o tempo cronos, extensivo e espacializado, que medimos e quantificamos entre ponteiros de um relógio, mas o tempo Aion em Deleuze, uma duração que pode durar um segundo ou uma vida inteira; quanto tempo dura uma tristeza de uma separação? Dizemos, ‘hoje tive um dia longo’, mas na realidade os dias sempre tem 24 horas. O que houve então? Há um aspecto da realidade que não pode ser medido e percebido cartesianamente, que só percebemos como sensação, nós sentimos. É essa temporalidade que exploro. São essas presentificações da espaço temporalidade ‘Ma’ que me interessam, que me fazem pulsar internamente e emanar externamente sensações.  

JC: Na performance você utiliza objetos cotidianos como placas metálicas e bacias. Qual é o papel desses elementos no trabalho? Como você os integra?

DT: Já faz um tempo que me instigava alcançar sensações e emoções na fisicalidade do som, não me interessando por aspectos simbólicos do som e da imagem desses objetos. E quando digo imagens, me refiro também às imagens sonoras que eles produzem: os sons de alguns instrumentos como o piano ou a guitarra, por exemplo, são demasiadamente carregados de simbolismos, sempre nos levando para outras referências audiovisuais na música e no cinema, para fora da experiência vivenciada ali, no presente. A partir deste desafio, comecei a buscar elementos simples, cujo som produzido fosse uma resultante direta de sua constituição física. Que materialidades sonoras me fariam encarnar, evocar, e afetar as pessoas com sensações de medo, insegurança e incerteza, sem que, em algum momento, eu necessitasse recorrer a imagens concretas e ao verbo? Cheguei, gradativamente, a algumas peças metálicas, constituídas integralmente por um mesmo material, que junto com sons gravados em espaço público e sintetizadores, formavam uma massa sonora mais abstrata, desmaterializadas de seu corpo cultural. E, para a captação do som, buscava microfones que fossem capaz de captar esta fisicalidade de forma mais pura e crua possível, e que fossem baratos, acessíveis e fáceis de construir e manusear. É uma posição política também, como uma forma de declarar ao mundo que experimentalismo, ao contrário do que muitos pensam, era algo extremamente acessível e generoso a qualquer tipo de interesse e tamanho de bolso. Não demorou muito para eu chegar nos microfones de contato piezo resistivos: versáteis, muito fiéis ao tipo de sonoridade que buscava, e o melhor de tudo, poderiam ser confeccionados artesanalmente a partir de míseros 20 reais. 

JC: E como têm sido para você adaptar essa performance para o meio digital?

DT: É um grande desafio, pois esta performance é pensada para uma realização presencial, em que o público fica muito próximo, e pode assim sentir melhor a intensidade dos gestos e das sonoridades. Trabalho com caixas de som grandes e com amplo espectro de frequências, o que proporciona uma variedade quase infinita de sub-graves e agudos. Já no celular, forma como a grande maioria das pessoas vai experienciar esta performance, por mais que eu esteja enviando áudio de alta resolução via streaming, vou contar com as limitadas caixas de som e fones dos aparelhos, sem falar na  conexão de internet de cada pessoa. São muitas variáveis que interferem na qualidade da experiência. Na realidade, esta situação de pandemia e isolamento social nos força a inventar soluções audiovisuais telemáticas para nosso trabalho, que tem também suas potencialidades, mas que ainda não foram exploradas como linguagem. Tudo é mediado por uma tela e por uma interface telemática. Isto cria uma série de limites técnicos, mas abre outras tantas possibilidades criativas. Sem o espaço físico, não temos mais limites geográficos de difusão, por exemplo. Amigos em outros continentes poderão assistir a estas lives. Talvez estejamos criando um novo hábito de consumo de modalidades artísticas consideradas, até então, fundamentalmente presenciais. Arrisco dizer que ao longo deste ano, surgirão trabalhos pensados para esta nova realidade. E tenho certeza que serão experimentos incríveis! Se olharmos para a história da música, temos vários exemplos de mudanças de hábito de consumo motivados por novas tecnologias e vice-versa. O advento do rádio, por exemplo, trouxe a possibilidade para pessoas menos favorecidas apreciarem os concertos e óperas que aconteciam nos luxuosos e elitistas teatros.

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